segunda-feira, 9 de abril de 2012

a Ilíada e Herculanum em contra-relógio.

Dois documentários sobre a perservação do património clássico.


O primeiro sobre a digitalização do famoso codex Venetus A, o mais importante e belo manuscripto que nos chegou da Ilíada, completo com os scholia (as valiosas anotações ao texto que começaram a ser acumuladas desde os comentadores alexandrinos (um bom livro sobre ler e perceber scholia [aqui]). Trazido pelo cardeal Bessarion, o ilustre discípulo de Gemistus Plethon de Byzantium até Venezas, cuja locupleta biblioteca de manuscriptos gregos, os tesouros de Constantinopla, se transformou no brilhante embrião da famosa Biblioteca Marziana, o Venetus A toca-nos pela sua fragilidade; a preservação contra a obliteração hac, a necessidade de salvaguardar as palavras nele contidos illac são o foco do primeiro documentário.




O segundo, bastante mais breve, discorre sobre os misteriosos papyros de Herculanum. A explosão do Vesúvio em AD79 não destruiu apenas a famosa cidade de Pompeios. Uma das vagas de lava arrasou também a cidade flanqueada de Herculanum, mais opulenta que Pompeios, cuja população foi principalmente massacrada após fugir para as praias enquanto esperava ser resgatada pela frota de Plínio. Dentro da cidade existia porém a casa do philósopho epicurista Philodemo; onde há philósophos há livros (χαίρε, ὦ Πλάτων!), e, sempre que possível, bibliothecas. Como era de costume até nas bibliotecas públicas romanas, a biblioteca deste Philodemo estava dividida em secção Latina e secção Grega. A secção Grega já foi completamente escavada, e os papyros carbonizados começaram a ser desvendados e lidos, através de técnicas desde os finais do século XIX que permitissem a leitura sem destruição daquilo que é, para todos os efeitos, papel em cinza. O número de papyros gregos a que conseguimos ter acesso é considerável, mas muito ainda falta por desvendar; nomeadamente, partes da secção latina da bibliotheca permanecem enterradas, deixando em aberto o que poderíamos encontrar: podemos sonhar ainda com a descoberta dos presumíveis livros do poema De Rerum Natura de Lucrécio (que com grande probabilidade era destas cidades, Pompeios ou Herculanum, originário) que faltassem no único manuscripto que sobreviveu até à idade Renascida, descoberto por Poggio Bracciolini e prontamente desaparecido em condições suspeitas. Podemos ainda suspeitar, esperançar, encontrar mais dos escritos de Demócrito e Epicuro junto dos manuscriptos gregos ainda cerrados. É também desta bibliotheca que nos chega o único autógrafo de toda a antiguidade, a saber a única linha que podemos ter a certeza virtualmente absoluta de que se trate de algo escrito por alguém a quem demos um nome: num dos papyros encontramos, numa espécie de guestbook dos convidados duma qualquer festa ou sarau, a seguinte palavra, Ὀυεργίλιος. Vergilius, cuja presença nesta área atestamos por fontes histórias, e cuja probabilidade de ter frequentado um grande ponto de cultura philosóphica epicurista é imensa.

São duas aproximações diversas à tradição da cultura e das letras clássicas. O caso do Venetus A é, apesar de tudo, diferente: trata-se de perservar o aspecto físico duma obra de arte palmar, até aos mais ínfimos detalhes, contra o tempo. Desejamos perservá-lo pela mesma razão que desejamos perservar templos, e ruínas. Mas é uma batalha perdida: salvar fotografias dum manuscripto não salvará o manuscripto, da mesma maneira que recriar o Parthénon nos Estados Unidos não salvará o Parthénon; conseguimos salvar os textos (principalmente, como no documentário, graças aos raios-x resgatar as palavras já-indecifráveis), e isso é uma vitória. Mas Herculanum é, apesar de tudo, algo de mais: falamos aqui de palavras que há milénios que não são lidas, e que poderão perder-se com a facilidade dum toque - quando a Villa dos Papiros foi pela primeira vez escavada, os filólogos tentaram abrir os papyros, destruindo muitos, até o rei em Nápoles ordenar que se cessasse. Mas não deixa de ser contra-relógio. Um amante da antiguidade que não fica comovido com estes esforços terá certamente uma visão defeituosa dos elos que simultaneamente nos ligam aos antigos e os mantêm à força longe de nós. Queiram Mercúrio e Fortuna auspiciar.




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