terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O Latim está morto. Viva o Latim!

Não, infelizmente ainda não é para falar do famoso livro de Wilfred Stroh, Latein ist tot, es lebe Latein, mas para falar dos artigos que ontem aqui publicitámos publicados pelo suplemento QI do Diário de Notícias. Uma das grandes novidades, em minha memória realmente algo novíssimo em Portugal fora o que ainda pela Origem vamos dizendo (mas corrijam-me!) foi um passo no artigo de Susana Salvador Da épica 'Eneida' aos crimes de 'Capti' abordando aquilo que em tempos recentes nos habituámos a chamar Latim vivo. À cabeça do artigo lemos que Stephen Berard «quer provar que o latim não é uma língua morta, que pode e deve ser ensinada como uma verdadeira língua e não apenas com a intenção de traduzir o que foi feito no passado.»

A própria expressão Latim vivo é provocatória: amantes do latim por este mundo fora defendem-se da acusação de que estudam "línguas mortas" argumentando que «o latim não está morto, pois está presente nas línguas contemporâneas, no vocabulário científico.» A verdade porém é que a atitude que predomina no nosso envolvimento com as línguas clássicas implica um distanciamento tal, até mesmo metodológico, que nem o Vergílio Ferreira escapa a tratar as línguas clássicas como mortas: talhamos, dissecamos, recusamo-nos a falar-lhes. Falar de "Latim Vivo" significa, então, a fortiori algo de antagónico e fundamentalmente diferente daquilo que faz a maior parte das pessoas que defende com unhas e dentes que «o Latim não está morto.»

Mas é uma expressão com sentido? Voltemos ao livro de Wilfred Stroh, que apesar de ter uma introdução que a meu ver contradiz o restante cunho da obra pode ainda assim ser encarado como um adequado manifesto da ideologia do autor, um académico alemão cuja fluência oral em Latim apenas muito raramente fica aquém do seu discurso alemão, e que nesse ponto suscita comparação com outros grandes latinistas contemporâneos como são Reginald Foster e Luigi Miraglia.


O seu argumento é um argumento de elegância simples, irrefutável como o dito de Arquíloco de que «πόλλ' οἶδ' ἀλώπηξ, ἀλλ' ἐχῖνος ἓν μέγα» [a raposa sabe muitos truques, o ouriço sabe um só mas bom]: a premissa simples de que, se seguimos a sensata definição duma língua morta como uma língua que já não tem falantes nativos, então o Latim morreu algures entre o século V e o VII. Há muitas tentativas de iludir esse facto através de argumentos cada vez mais rebuscados, mas o problema é esses argumentos (como a facilidade posterior em aprender outras línguas, a suposta "matematicidade" da língua, ou as marcas de gelados ou de videojogos em pseudo-latim) serem  fundamentalmente contra-produtivas se extraídas da função didáctico e trazidas para a praça pública, e facilmente refutáveis — aprendamos então outras línguas em vez de o fazermos por proxy, estudemos matemática, e assim por diante.


A virtude real do Latim não está nas consequências secundárias, mas nasce do facto de muito cedo ter sido retirado à propriedade dum povo específico. A alvorada da Idade Média iluminou muitos ditos bárbaros melhor conhecedores da língua de Cícero que os próprios italianos que lhe tinham dado o ser, e nem mesmo as tentativas italo-renascentistas de associar o renascimento do Latim ao studium Italicae patriae (vulgo patriotismo) como o vemos nas obras de Petrarca e de Lorenzo Valla foi capaz de impedir que a estrela mais fulgente da Renascença fosse um bárbaro septentrional como Erasmo de Roterdão.

A grande virtude desse sistema foi a posse duma língua neutra, à qual todos necessariamente acediam em pé de igualdade: assim pensando, a utilização do Latim pós-Império foi bastante mais justa que a sua imposição vi ac armis durante a Antiguidade. Observamos a partir da Baixa Idade Média, com a primeira grande formulação na figura do tratado dantesco De Vulgari Eloquentia algo que costuma escapar aos inimigos do Latim, que é que o uso do Latim não abafa o uso das línguas vulgares nem vice-versa: são apenas bem-delimitados os campos em que cada uma das línguas deverá ser utilizada. O vernáculo era utilizado quando o texto se destinava aos nossos compatriotas, o Latim quando havia pretensões de disseminação mais alargada. No século XV a Chancelaria de Florença estabelece essa política simples: italiano para a Toscana, Latim para outros. Até ao século XVIII figuras como Descartes e Kant sentem-se necessitados de verter para Latim quando se apercebem de que o interesse suscitado pelas suas obras poderá passar além fronteiras. Que a literatura latina renascentista nos encha tão raramente as medidas é prova disso: para a literatura, urbi, havia os vernáculos. Para a ciência natural, filosofia, artes, que almejavam ao mundo, orbi, o Latim.

Especialmente a partir do Renascimento os campos demarcaram-se na maneira relativamente sensata que referia, mas a partir do Romantismo, as mesmas pessoas que protestavam contra o Latim como algo "inacessível" o mais das vezes tinham como objectivo nada mais do que a imposição da sua própria língua além-fronteiras: vê-se, por exemplo, na política de imposição linguística imposta por França no século XVII, onde os embaixadores, embora soubessem Latim, exigiram que os endereçassem em Francês. O resultado foi o esperado, eliminado o Latim de maneira alguma os povos se libertaram da "tirania" duma língua exterior, aconteceu apenas que foram tirados da situação relativamente igualitária de estarem todos no mesmo barco na aprendizagem da língua franca, para passarem a estar à deriva e sujeitos às sucessivas potências mundanas, ora a França, ora os Estados Unidos, em breve a China, que vão aliando o poder económico à força bruta derivada de os nativos dessa língua terem a economia a apoiá-los contra os demais. Hoje em dia portugueses que aprenderam o Francês como língua franca sentem-se muitas vezes perdidos face à omnipresença do inglês. E a situação rodará.

Mas isto é diagnóstico: a conjuntura histórica que permitiu que o Latim fosse adoptado pelos povos da Europa como língua de cultura (como língua artificial, segundo o mesmo Dante) não se voltará a repetir; e não vivemos em nostalgias nem em saudosismos supervacâneos de pretender restaurar aquilo que já está morto e enterrado: o Latim não voltará a ser língua oficial de coisa alguma, portanto o nosso problema é agora essencialmente histórico. Histórico e académico. Pois apercebemo-nos de que os guardiães do Latim, metamorfoseados de humanistas em filólogos, a partir do momento em que o Latim perdeu a utilidade prática que tivera, descartaram-se de o utilizar como dantes, e concentraram-se naquela que é a grande razão para o estudar, e que eclipsa todas as outras: aceder ao imenso rio de literatura latina composto ao longo de mais de dois milénios. Se o objectivo passou a ser histórico-literário, então a uma primeira vista pode parecer compreensível que deixemos de utilizar de modo vivo o Latim: se já não serve para nada falá-lo, para que serviria?

A falha do raciocínio implícito na transformação de Litterae Humaniores em Altertumswissenschaften foi algo que deve ter sido considerado à primeira vista tão insignificante que foi descartado: pensou-se que a quebra de necessidade de aprender a falar e a escrever Latim libertaria tempo para outras actividades relacionadas com a mesma língua, críticas e menos fúteis. Aquilo que não foram porém capazes de prever foi que no espaço de poucos anos (os primeiros alertas para a decadência cada vez mais acelerada do conhecimento do Latim soam por volta de 1870~) os alunos e os próprios professores tivessem de lidar com dificuldades cada vez maiores já nem digo na leitura, mas na própria tradução do Latim (e do Grego, claro está: há fraseologias de Grego Antigo publicadas até ao século XVIII).

Como sanar? Paradoxalmente, já o entendimento do que a língua era ou podia ser estava tão pervertido que a solução encontrada foi exagerar o problema: mais filologia histórica, mais análise gramatical, mais horas semanais de Latim (é aqui, e não antes, que nasce o rosa, rosae: alunos anteriores, pelo menos desde Coménio, teriam começado com um relativamente amável Salve! Quod est nomen tuum?). Abundam nos corredores de Estudos Clássicos lendas daqueles semi-deuses que aos 15 anos já escreviam hexâmetros e já tinham lido toda a Literatura Latina, e lamentamos a ignorância dos nosso alunos porque  tanto estudam e não lhes chegam aos calcanhares. Mas se o estudo da Antiguidade nos revela algo é que a Humanidade é sempre igual, nem melhor nem pior: se eles tinham mais sucesso era porque faziam algo que nós não fazemos, e que assim dito hipoteticamente poderíamos voltar a fazer.

Os melhores dos humanistas não cometeram este erro: sabiam que para dominarem uma língua era necessário praticá-la viva e activamente, mesmo fora de qualquer interesse prático. Já bem depois da queda de Constantinópola e do Grego ter deixado de ter qualquer interesse mercantil ou diplomático, o célebre Aldo Manuzio fundou em Veneza a Nea Akademia [Nova Academia], onde o Grego Antigo era a língua oficial, com multas monetárias para os infractores. Erasmo frequentou-a durante bastante tempo, e tornou-se assim não apenas o maior Latinista, mas possivelmente também o maior Helenista da sua geração. Nós consagramos o seu nome nas nossas Universidades mas esquecemos as suas lições.

É por isso que acredito que, quando lemos Mafalda Viana* para o efeito de que "nós, efetivamente, não falamos latim e aquele que se aprende é apenas para aceder às obras e aos autores clássicos", há uma confusão perigosa: concordo plenamente quando diz que aprendemos latim para aceder às obras e aos autores que escreveram em Latim, mas mantenho-me convicto que sem falar Latim não conseguiremos atingir esse objectivo. Quando não falamos uma língua, quando nos limitamos a traduzi-la, o salto mental é duplo: do Latim para a tradução vernácula, da tradução para a compreensão. Por não termos as palavras presentes na memória, o recurso ao dicionário e às gramáticas torna-se algo incomportável e extremamente anti-pedagógico. Quando aprendemos línguas contemporâneas, obrigam-nos a imergirmo-nos o mais possível nessa língua, de maneira a interiorizarmos as suas estruturas sintáticas e a tornarmo-nos independentes no domínio dessa língua.

E assim acontece. O encantador blog Laudator Temporis Acti citava há tempos um classicista do século passado (infelizmente não fui capaz de recuperar a ligação) que brincava dizendo que o «o segredo que os classicistas mantém bem-escondido dos seus colegas de outros departamentos é que não dominam as suas línguas [Latim e Grego] tão bem quanto os outros as deles)». Isto não tem outra causa fora o facto de termos há muito tempo prescindido do uso vivo do Latim (e do Grego): e tem a consequência de não sermos tão bons profissionais quanto poderíamos ser, e de não termos acesso aos textos com a facilidade que poderíamos ter: tentamos cativar alunos para Estudos Clássicos assegurando-lhes que terão acesso a um património cultural imenso, mas um aluno que termina hoje Clássicas depara consigo mesmo apenas marginalmente menos dependente de traduções dos textos antigos do que os seus pares, e isto vê-se no "culto dos Loebs" (edições bilingues) em detrimento de edições críticas.

O que fazer? Felizmente parece haver luz ao fundo do túnel. Países como a Itália, principalmente sob a liderança da Academia Vivarium Novum, têm divulgado o regresso aos métodos vivos de ensino do Latim, com o seu estrondoso sucesso a demonstrar-se, entre outras, no facto de os vencedores do último Certamen Ciceronianum terem sem excepção utilizado o método vivo. Em Espanha, como já aqui fizémos menção, crescem os Circuli Latini quer junto de alunos quer de professores, e o mesmo se passa nos Estados Unidos com o Institutum Latinum da Universidade de Kentucky e com pessoas como David Morgan. Uma das grandes armas é sem dúvida o livro Lingua Latina Per Se Illustrata, o livro publicado por Hans Orberg na década de 50 do ano passado que descarta por completo a tradução, e subordina a dissecação gramatical à compreensão e reprodução de textos. Falta agora nós darmos o passo.

Desta maneira o resultado normal é bastante animador: a prática da língua leva a que nos tornemos mais conscientes dos textos com que lidamos, adquirindo por exemplo a capacidade de identificar usos irónicas do vocabulário ou outros tropos fora do comum (que, normalmente, nos levariam apenas a mais uma vaga passagem pelo dicionário), e a tornarmo-nos mais independentes das traduções feitas para línguas contemporâneas — o que, por sua vez, nos tornará mais aptos a traduzir cada vez mais obras para o uso dos nossos pares que desconheçam as línguas antigas. Parece-me que tudo a ganhar em enveredar por esta via, e tudo a perder se a preterirmos, alunos, interesse pedagógico e comunitário cada vez mais decadente, já para não falar dos efeitos sociais que brotam da ausência dum conhecimento mais generalizado das línguas antigas por parte das secções da população que as estudam: se todos os alunos que estudam Latim e Grego fossem capazes de ler Platão e Vergílio com facilidade (e isso não é de todo impossível), e passassem o seu interesse a outros, onde pararia o mundo?

* A Professora da Universidade de Lisboa lançou entretanto uma declaração onde se afastava da utilização dada às suas palavras pelo Diário de Notícias. «Por a peça jornalística com o título “O latim é o chão comum da Europa”, publicado entre as páginas 6 e 8 do suplemento Quociente de Inteligência do Diário de Notícias de sábado, dia 2 de fevereiro, constituir em sua grande percentagem discurso que não é meu e no qual, além de eu não encontrar o meu pensamento, surgem várias ideias pouco rigorosas, solicito ao Diário de Notícias que publique este meu testemunho e esclarecimento.» Mafalda Viana

4 comentários:

  1. Já agora, deixo aqui algo que me parece importante:

    "Por a peça jornalística com o título “O latim é o chão comum da Europa”, publicado entre as páginas 6 e 8 do suplemento Quociente de Inteligência do Diário de Notícias de sábado, dia 2 de fevereiro, constituir em sua grande percentagem discurso que não é meu e no qual, além de eu não encontrar o meu pensamento, surgem várias ideias pouco rigorosas, solicito ao Diário de Notícias que publique este meu testemunho e esclarecimento." Mafalda Viana

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  2. Também me chegara aos ouvidos essa demarcação de posição, mas não a tinha ainda conseguido ler: valha isto o que valer vou acrescentar uma ressalva. Acaso no entanto sabes de que afirmações é que ela se afasta? Em particular, se ela está tão afastada do /ūsus linguæ/ como o artigo dá a entender? Pois o outro artigo/entrevista à Cristina Pimentel parecia estar bastante mais aberto à lingua vīva, o que na altura bastante me alegrou. Obrigado pela partilha!

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  3. Quanto a esse ponto em concreto parece-me muito improvável que corresponda à realidade. Bom, em todo o caso, não me parece nada seguro estar a veicular e a objectar ideias de um texto cuja validade é a que vemos na nota de esclarecimento.

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  4. Apenas por tua graça tive acesso ao esclarecimento, pode estar-se seguro de que não a citei à má fé. Seja como for, mesmo limitando-se o meu confronto a uma linha citada em discurso directo, já na altura antes de saber de qualquer esclarecimento procurei na página da FLUL o email dela para lhe colocar algumas questões, mas sem sucesso; a dar-se o caso de eventualmente o conseguir poderei reescrever pontos disto, mas até então temo não ter alternativa a deixar como está, com a nota de ressalva explicitada.

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