segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

"Nos seus olhos vazios não se cruzam línguas": a propósito da cabecinha romana das ruínas de Milreu

 
Cabeça de Milreu, peça do mês, em Dezembro de 2013, no Museu Nacional de Arqueologia 




Cabecinha romana de Milreu

Esta cabeça evanescente e aguda,
tão doce no seu ar decapitado,
do Império portentoso nada tem:
Nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
na sua boca as legiões não marcham,
na curva do nariz não há os povos
que foram massacrados e traídos.
É uma doçura que contempla a vida,
sabendo como, se possível, deve
ao pensamento dar certa loucura,
perdendo um pouco, e por instantes só,
a firme frieza da razão tranquila.
É uma virtude sonhadora: o escravo
que a possuía às horas da tristeza
de haver um corpo, a penetrou jamais
além de onde atingia; e quanto ao esposo,
se acaso a fecundou, não pensou nunca
em desviar sobre si tão longo olhar.
Viveu, morreu, entre as colunas, homens,
prados e rios, sombras e colheitas,
e teatros e vindimas, como deusa.
Apenas o não era: o vasto império
que os deuses todos tornou seus, não tinha
um rosto para os deuses. E os humanos,
para que os deuses fossem, emprestavam
o próprio rosto que perdiam. Esta
cabeça evanescente resistiu:
nem deusa, nem mulher, apenas ciência
de que nada nos livra de nós mesmos.

Jorge de Sena, Quinze Poetas Portugueses do Século XX, Selecção de Gastão Cruz, Assírio & Alvim, Lisboa 2004

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