sexta-feira, 20 de julho de 2012

Vieira, Maquiavel, Tácito

Seguem-se algumas notas que acompanham o texto do Sermão da Sexta Sexta-Feira de Quaresma, do Pe. António Vieira, na edição crítica da INCM (volume II dos Sermões). São genericamente inteligíveis apesar de soltas e providenciam, pela sua exaustão, uma história da interpretação de Tácito por Vieira e os seus contemporâneos, à luz de Maquiavel. 

133. Vieira encaminhou o seu discurso para a exprobação da má política e dos maus conselhos que davam primazia às «razões de Estado» mesmo quando elas são «contra Cristo», o que nos remete para a polémica da expulsão dos Jesuítas do Maranhão. Embora a expressão 'razões de Estado' não seja de Maquiavel (1469-1527) — mas sim, ao que parece, do arcebispo Giovanni della Casa, que a usou em 1547 dirigindo-se a Carlos V — ela é habitualmente associada à doutrina por ele exposta em Il Principe, obra escrita em 1513 — mas só publicada em 1532, depois de circular em cópias manuscritas — e condenada no Índex romano de 1559 e no Índex tridentino de 1564. A obra de Maquiavel inseria-se num largo movimento ideológico-político que punha em causa a primazia dos princípios cristãos no governo dos Estados. Assim, propugnava que, para alcançar e manter a sua própria glória e para garantir a preservação do Estado, o princípe não só podia como, em certos casos, devia recorrer a meios vedados pela moral tradicional, tal como lhe era lícito simular virtudes ou ostentar vícios que lhe mantivessem a majestade. Seguida por alguns e diabolizada por muitos, com toda a deturpação que sofreu de parte a parte, acusada de inspirar até os maiores horrores, como a matança da noite de S. Bartolomeu, em 1572, a obra de Maquiavel tornou-se um texto maldito sobretudo na perspectiva dos autores cristãos, especialmente para os teólogos jesuítas, que contra-atacaram com a teorização de uma 'razão de Estado' compatível apenas com os princípios da religião. Vieira está entre os que vêem nela a perniciosa regra por que se regem os governantes, condenando-a com veemência em toda a parte final deste sermão, ainda que em outros passos a sua exprobação da ideologia maquiavelista não seja tão severa (cf., e.g., o «Sermão de S. Roque», 1644, 2º do tomo XII, §60, onde escreve: «a bondade das obras está nos fins, não está nos instrumentos. As obras de Deus são boas; os instrumentos, de que se serve, podem ser bons, ou maus»). [...]

146. Tácito (c. 55-c. 117), o maior historiador latino, impopular entre os primitivos autores cristãos que erroneamente lhe assacaram a mentira de que os cristãos adoravam um burro como deus (cf. Tertuliano, Apologeticum 16, 3) e o exprobravam pela sua classificação dos cristãos como gente per flagitia inuisos (detestados pelas suas infâmias) e do cristianismo como exitiabilis superstitio (supertição perniciosa: Annales, XV 44, 2), não foi muito lido durante a Idade Média. Com o Renascimento, porém, a sua obra torna-se objecto de numerosas edições e traduções (com especial destaque para a edição de Justus Lipsius, em 1574), e suscita um profundo interesse, quer pelo seu teor moralista, quer pela lucidez e desencanto com que observou os efeitos da prepotência e crueldade de imperadores como Tibério e Nero. No entanto, logo no século XVI a obra de Tácito — em especial os Annales, cujos primeiros seis livros, os livros sobre Tibério, foram publicados em 1515 — começa também a ser lido como uma ars aulica de cariz afim ao maquiavelismo: a figura de Tibério torna-se, nesta perspectiva, o modelo do antigo 'príncipe' e os comentários à obra de Tácito, de que surge mais de uma centena só entre 1580 e 1700, passam a orientar-se predominantemente segundo as perspectivas do maquiavelismo. Em Tácito se encontra até uma expressão, arcana imperii (os segredos do poder: Annales, II 36), que será pedra-de-toque na discussão em torno da 'razão de Estado'. O interesse por Tácito assume, assim, uma amplitude que permitirá dar o nome de 'tacitismo' a todo um movimento ideológico que se verificou em campos como a literatura, a história, e sobretudo o pensamento político, e teve o seu apogeu no século XVII. No fim do século XVI, todavia, ressurge a linha de leitura mais favorável a Tácito. Coexistem, pois, dois vectores no tacitismo: recorrendo à divisão consagrada por Giuseppe Toffanin, na sua obra Machiavelli e il Tacitismo (1921), de um lado estão os 'tacitistas negros' — os que nele lêem lições de política maquiavélica, isto é, enquanto manual de como se tornar um tirano e de legitimação do poder absoluto e da 'razão de Estado' — do outro, os 'tacitistas vermelhos' — os que nele vêem lições que sustentam ideais republicanos e um guia que instrui sobre a forma de sobreviver debaixo de um governo despótico. Há, no entanto — e Vieira é largamente devedor dessa perspectiva — um terceiro grupo, o daqueles que atacam Tácito para atacarem Maquiavel, que continuava no Índex. É o caso de muitos autores cristãos, entre os quais assume relevo o jesuíta Pedro de Ribadaneira. A leitura da obra de Tácito sob pontos de vista antagónicos não cessou com o fim do tacitismo: bastará lembrar a utilização laudatória dos seus ideias republicanos por parte dos homens da Revolução Francesa, o ódio que Napoleão manifestava por Tácito que considerava um pamphlétaire, e o aproveitamento por parte de Hitler e do nacional-socialismo de obras como a Germania. Para uma boa síntese sobre o tacitismo, v. os trabalhos de P. Burke: «Tacitism», in T. A. Dorey (ed.), Tacitus, London, 1969, pp. 149-171; «Tacitism, scepticism, and reason of state», in J. H. Burns, with Mark Goldie (ed.), The Cambridge History of Political Thought, 1400-1700, Cambridge, 1994, pp. 479 e ss.; Alexandra Gadja, «Tacitus and political thought in early modern Europe, c. 1530-c.1640», in A. J. Woodman (ed.), The Cambridge Companion to Tacitus, Cambridge University Press, 2009, pp. 253-268.

147. Associando Tácito à doutrina de Maquiavel, cujo nome não é nunca pronunciado pois a leitura da sua obra continuava proibida, Vieira alude decerto também a todos os que seguiram e desenvolveram o maquiavelismo e o tacitismo. Recorde-se, entre muitos outros, o nome de Francesco Guicciardini (1438-1540) — também ele um teórico de que as virtudes tradicionais deviam apagar-se perante o objectivo da preservação do Estado, e sem dúvida o principal divulgador da teoria da 'razão de Estado' em toda a Europa — que, lendo e apreciando Tácito, considerava que a sua obra instruía sobre como havia que construir e sustentar um Estado absoluto. Para a análise do tacitismo e dos seus principais nomes em Portugal, v. Luís Reis Torgal, Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração, Coimbra, 1982, especialmente as pp. 168 e segs., do vol. II, e Martim de Albuquerque, Construção Ideológica do Estado, Lisboa 2002.

150. A perspectiva de Vieira sobre a obra de Tácito, pelo menos relativamente ao seu conteúdo — ou àquilo que da sua obra lera ou conhecia — é profundamente negativa, porque marcada pela interpretação que referimos supra. Nunca o incluindo entre o número dos historiadores, designando-o sempre por 'político' (cf. o já citado «Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma», §246, em que o associa a Xenofonte: «Entre os Políticos, Xenofonte, Tácito...», ou o que diz no Sermão Quarto do Rosário, (tomo IX, §143): «se o que escreve é Tácito, tudo é política»), criticando aqueles que põem em causa os ensinamentos da Bíblia Sagrada substituindo-a pela bíblia de Tácito (cf. Xavier Acordado, «Sermão Primeiro, Anjo», tomo VIII, §IV: «Os Políticos, que não contentes com interpretar a sua Bíblia, que é o Tácito, se metem também a comentar a nossa...»), «o texto dos Políticos» (cf. «Sermão do Felicíssimo Nascimento da Sereníssima Infanta Teresa Francisca Josefa», tomo XI, §V), Vieira insere-se na linha daqueles que identificam a obra do historiador romano com a 'malícia' que então orientava a reflexão sobre o poder, e declara categoricamente que Tácito era «mais versado nas políticas do mundo, que nas do espírito» (Xavier Acordado, «Sermão Décimo da Sua Canonização», tomo VIII, §V). Nessa perspectiva, lê ele próprio pela mesma cartilha de muitos, em Portugal e nos países da Europa. [...] Vieira não ficou, porém, imune ao fascínio da prosa de Tácito, e cita-o mais de uma dezena de vezes nas suas obras, embora pareça que nem sempre o faz por leitura directa.   

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