segunda-feira, 2 de julho de 2012

O Comentador

Conversa imaginária entre Averróis e Porfírio, no Liber de Herbis de Monfredo de Monte Imperiali (séc. XIV)
[Situações excepcionais de trabalho académico têm ditado o meu silêncio neste blogue, ainda que vá acumulando material para postar depois. Sabendo não ser esta uma situação ortodoxa, que pretenda repetir, mas tendo como precedente, ainda que inverso, o uso, num trabalho de seminário de mestrado, de textos aqui antes publicados, deixo agora um parágrafo daquele que tenho agora em mãos, que vem na sequência de outro [parágrafo] sobre a visão "decadentista" de Platão, expressa no Livro VIII da República, onde é apresentada a sequência negativa (inevitável) dos regimes políticos (aristocracia, timocracia, oligarquia, democracia e tirania). A edição utilizada da Exposição foi a de Miguel Cruz Hernandez, de 1998 (5ª edição), publicada pela Tecnos, de Madrid].

§4.1 Poucos estarão dispostos a adoptar a perspectiva de Platão: como os gregos em geral, o Mestre tem a força esquecida de olhar o abismo sem ceder ao monstro. É, nesse aspecto, sintomática a forma como Averróis explica as teses do Livro VIII na sua Exposição da República de Platão. Apesar de invocar [95|367v] a doutrina física, que podemos fazer remontar a Anaximandro, da compensação (a desmesura de um dos elementos acarreta o triunfo subsequente do seu contrário) para ilustrar a passagem da democracia à tirania (o excesso de liberdade gera a escravidão mais completa), afirma peremptoriamente que o modelo de desenvolvimento que vale na natureza (em que da semente vem a árvore, da flor o fruto, sem que se possa omitir etapas: natura non facit saltus) não serve para os fenómenos políticos: «respecto a estos otros assuntos [as sociedades] son completamente libres» [102|371r]. Esta posição obriga Averróis a aceitar que em cada regime existem cidadãos com o carácter próprio dos homens de outros regimes, condição de possibilidade para que a transição para qualquer outra constituição se opere [ib.]. 

Todavia o regime democrático é, na sua opinião, particularmente aberto, porque acolhe todo o género de homens (lembremo-nos da imagem platónica do manto colorido): «encontramos en ella [na democracia] gente preocupada por el honor, hombres buscadores de bienes, e individuos inclinados a la tiranía; y hasta es posible que entre ellos se cuente alguno que prefiera la virtud y sea guiado por ella» [83|362v]. Como o ἄπειρον de Anaximandro, a democracia é, apropriadamente (na medida em que é o que mais preza a liberdade, ao ponto de a estender ao seu futuro), o regime da máxima possibilidade (e, correlativamente, o da menor actualidade do poder qua poder [mando]: cada um faz o que quer), caixa de chocolates («you never know what you’re gonna get»), de onde pode sair qualquer outro. Não é, por isso, de estranhar que o Andaluz considere a democracia o regime das primeiras sociedades, que emergem uma vez satisfeitas as necessidades básicas [84|363r e 93|367r]. O poder não se afirma logo, na sua robustez, antes há que pensar que nos primórdios valia apenas um conjunto mínimo de leis, as únicas que os democratas, talibãs da liberdade, aceitam, que protegem o direito à vida e à propriedade (as leis primárias), os direitos comerciais (leis secundárias) e a moralidade (!) (leis terciárias) (observe-se a hierarquia) [83-4|362v]. Escusado será dizer que, com o tempo, até estas leis (nomeadamente a da propriedade) acabam desrespeitadas. 

A evolução para a tirania, porém, como já foi dito, não é inevitável, simplesmente a progressão dos regimes elaborada por Platão é a que mais frequentemente se regista [102|371r], e Averróis, como um Maquiavel, vai ilustrando a sua exposição com exemplos retirados da História dos reinos árabes peninsulares. A sua recusa do determinismo platónico está desde logo patente na razão que dá para o fim do reinado do filósofo-rei: são «los gobernantes de esta comunidad [que] no procuran la selección de los cidadanos adecuados para la procreación del modo como Platón ha especificado» [87|364v] [sublinhado nosso]: é a uma decisão voluntária dos governantes que conduz ao fim do regime ideal e não, como em Platão, os limites necessários do conhecimento humano. Por fim, há que registar, engrossando o optimismo do Comentador, o que implica esta sua tese de que qualquer πολιτεία pode evoluir para outra (pode saltar-se, por exemplo, directamente da democracia para a aristocracia!): é então de admitir que são muito mais os homens justos, capazes de governo (para as qualidades do filósofo-rei, vide 80|361r), do que, lendo Platão (sempre muito céptico em relação ao seu aparecimento), seríamos levados a crer. Vale a pena então ter fé: o rei já está entre nós.

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