domingo, 29 de julho de 2012

Notas de um Classicista aos Evangelhos §1

§1 Ao Miguel agradeço ter-me pela primeira vez chamado a atenção para um estonteante passo da Ilíada, só comparável (e por defeito) ao verso 67 do Hino a Apolo, em que o deus é chamado de ἀτάσθαλος (o LSJ traduz por wicked; em português poderíamos escrever selvagem), para perplexidade geral dos comentadores. Logo no Canto I do Poema, no verso 47, lê-se, de facto: «E [Apolo] chegou como chega a noite» [ὃ δ᾽ ἤϊε νυκτὶ ἐοικώς] [trad.: Frederico Lourenço], um oxímoro violento: o deus da luz vem como as trevas. Encontramos, mas ao contrário, um paradoxo semelhante no final da descrição da Paixão, em Lucas 23, 54: 
καὶ ἠμέρα ἦν παρασκευῆς καὶ σάββατον ἐπέφωσκεν. [Et dies erat Parasceves, et sabbatum illucescebat.]
Adicionei a tradução latina da Vulgata para mostrar como ela, ao contrário de tantas traduções modernas que vertem ἐπέφωσκεν por começava, se mantém fiel à ideia do grego. De facto, ἐπέφωσκεν quer dizer amanhecia (tem na raiz φῶς, luz, de onde o nosso fós-foro, que os latinos traduziram literalmente por lúci-fer, aquele que transporta a luz). São Lucas diz-nos, então, que o sábado amanhecia — mas, e aqui está a beleza do passo, isso significa tão só que a noite caía e que Vénus (a estrela da tarde) era já visível no horizonte, marcando o início do sábado, que para os judeus começa, precisamente, depois do pôr-do-sol. Fora Lucas poeta e poderia ter escrito mais explicitamente: «amanhecia a noite».  

§2
Ταῦτα εἰπὼν Ἰησοῦς ἐξῆλθεν σὺν τοῖς μαθηταῖς αὐτοῦ πέραν τοῦ χειμάρρου τοῦ Κεδρὼν ὅπου ἦν κῆπος, εἰς ὃν εἰσῆλθεν αὐτὸς καὶ οἱ μαθηταὶ αὐτοῦ. [Jo 18, 1]. Havendo Jesus dito estas coisas, saiu-se com seus Discípulos d'além do ribeiro do Cedron, aonde estava uma horta, em que entrou ele e seus Discípulos. [trad.: João Ferreira d'Almeida]
Onde d'Almeida tem d'além no grego está πέραν, para/ na outra margem. Não sou um exegeta bíblico autorizado, mas parece subentender-se da preposição que Jesus e os discípulos atravessaram o ribeiro para o Getsémani. Quem esteja familiarizado com a via crucis no Coliseu que a RTP 2 transmite todos os anos por ocasião da Páscoa (digo esta em específico porque é diferente da tradicional e mais fiel aos relatos bíblicos), saberá que a Paixão de Cristo começa no Jardim das Oliveiras. A passagem do Cédron reveste-se assim de uma dimensão simbólica fundamental, marcando o início da cadeia de acontecimentos que é de todos, crentes e não crentes, sobejamente conhecida. Não querendo forçar os paralelos, mas ao revisitar o texto não pude deixar de me lembrar dessoutra travessia, também de um pequeno curso de água, igualmente marcante da História:

César Cruzando o Rubicão, de Jean Fouquet (segunda metade séc. XV) @ Louvre, Paris.

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