146. Tácito (c. 55-c. 117), o maior historiador latino, impopular entre os primitivos autores cristãos que erroneamente lhe assacaram a mentira de que os cristãos adoravam um burro como deus (cf. Tertuliano,
Apologeticum 16, 3) e o exprobravam pela sua classificação dos cristãos como gente
per flagitia inuisos (detestados pelas suas infâmias) e do cristianismo como
exitiabilis superstitio (supertição perniciosa:
Annales, XV 44, 2), não foi muito lido durante a Idade Média. Com o Renascimento, porém, a sua obra torna-se objecto de numerosas edições e traduções (com especial destaque para a edição de Justus Lipsius, em 1574), e suscita um profundo interesse, quer pelo seu teor moralista, quer pela lucidez e desencanto com que observou os efeitos da prepotência e crueldade de imperadores como Tibério e Nero. No entanto, logo no século XVI a obra de Tácito — em especial os
Annales, cujos primeiros seis livros, os livros sobre Tibério, foram publicados em 1515 — começa também a ser lido como uma
ars aulica de cariz afim ao maquiavelismo: a figura de Tibério torna-se, nesta perspectiva, o modelo do antigo 'príncipe' e os comentários à obra de Tácito, de que surge mais de uma centena só entre 1580 e 1700, passam a orientar-se predominantemente segundo as perspectivas do maquiavelismo. Em Tácito se encontra até uma expressão,
arcana imperii (os segredos do poder:
Annales, II 36), que será pedra-de-toque na discussão em torno da 'razão de Estado'. O interesse por Tácito assume, assim, uma amplitude que permitirá dar o nome de 'tacitismo' a todo um movimento ideológico que se verificou em campos como a literatura, a história, e sobretudo o pensamento político, e teve o seu apogeu no século XVII. No fim do século XVI, todavia, ressurge a linha de leitura mais favorável a Tácito. Coexistem, pois, dois vectores no tacitismo: recorrendo à divisão consagrada por Giuseppe Toffanin, na sua obra
Machiavelli e il Tacitismo (1921), de um lado estão os 'tacitistas negros' — os que nele lêem lições de política maquiavélica, isto é, enquanto manual de como se tornar um tirano e de legitimação do poder absoluto e da 'razão de Estado' — do outro, os 'tacitistas vermelhos' — os que nele vêem lições que sustentam ideais republicanos e um guia que instrui sobre a forma de sobreviver debaixo de um governo despótico. Há, no entanto — e Vieira é largamente devedor dessa perspectiva — um terceiro grupo, o daqueles que atacam Tácito para atacarem Maquiavel, que continuava no Índex. É o caso de muitos autores cristãos, entre os quais assume relevo o jesuíta Pedro de Ribadaneira. A leitura da obra de Tácito sob pontos de vista antagónicos não cessou com o fim do tacitismo: bastará lembrar a utilização laudatória dos seus ideias republicanos por parte dos homens da Revolução Francesa, o ódio que Napoleão manifestava por Tácito que considerava um
pamphlétaire, e o aproveitamento por parte de Hitler e do nacional-socialismo de obras como a
Germania. Para uma boa síntese sobre o tacitismo, v. os trabalhos de P. Burke: «Tacitism»,
in T. A. Dorey (ed.),
Tacitus, London, 1969, pp. 149-171; «Tacitism, scepticism, and reason of state»,
in J. H. Burns, with Mark Goldie (ed.),
The Cambridge History of Political Thought, 1400-1700, Cambridge, 1994, pp. 479 e ss.; Alexandra Gadja, «Tacitus and political thought in early modern Europe, c. 1530-c.1640»,
in A. J. Woodman (ed.),
The Cambridge Companion to Tacitus, Cambridge University Press, 2009, pp. 253-268.
147. Associando Tácito à doutrina de Maquiavel, cujo nome não é nunca pronunciado pois a leitura da sua obra continuava proibida, Vieira alude decerto também a todos os que seguiram e desenvolveram o maquiavelismo e o tacitismo. Recorde-se, entre muitos outros, o nome de Francesco Guicciardini (1438-1540) — também ele um teórico de que as virtudes tradicionais deviam apagar-se perante o objectivo da preservação do Estado, e sem dúvida o principal divulgador da teoria da 'razão de Estado' em toda a Europa — que, lendo e apreciando Tácito, considerava que a sua obra instruía sobre como havia que construir e sustentar um Estado absoluto. Para a análise do tacitismo e dos seus principais nomes em Portugal, v. Luís Reis Torgal,
Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração, Coimbra, 1982, especialmente as pp. 168 e segs., do vol. II, e Martim de Albuquerque,
Construção Ideológica do Estado, Lisboa 2002.
150. A perspectiva de Vieira sobre a obra de Tácito, pelo menos relativamente ao seu conteúdo — ou àquilo que da sua obra lera ou conhecia — é profundamente negativa, porque marcada pela interpretação que referimos
supra. Nunca o incluindo entre o número dos historiadores, designando-o sempre por 'político' (cf. o já citado «Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma», §246, em que o associa a Xenofonte: «Entre os Políticos, Xenofonte, Tácito...», ou o que diz no Sermão Quarto do Rosário, (tomo IX, §143): «se o que escreve é Tácito, tudo é política»), criticando aqueles que põem em causa os ensinamentos da Bíblia Sagrada substituindo-a pela bíblia de Tácito (cf.
Xavier Acordado, «Sermão Primeiro, Anjo», tomo VIII, §IV: «Os Políticos, que não contentes com interpretar a sua Bíblia, que é o Tácito, se metem também a comentar a nossa...»), «o texto dos Políticos» (cf. «Sermão do Felicíssimo Nascimento da Sereníssima Infanta Teresa Francisca Josefa», tomo XI, §V), Vieira insere-se na linha daqueles que identificam a obra do historiador romano com a 'malícia' que então orientava a reflexão sobre o poder, e declara categoricamente que Tácito era «mais versado nas políticas do mundo, que nas do espírito» (
Xavier Acordado, «Sermão Décimo da Sua Canonização», tomo VIII, §V). Nessa perspectiva, lê ele próprio pela mesma cartilha de muitos, em Portugal e nos países da Europa. [...] Vieira não ficou, porém, imune ao fascínio da prosa de Tácito, e cita-o mais de uma dezena de vezes nas suas obras, embora pareça que nem sempre o faz por leitura directa.