Pirítoo e Teseu no Templo da Amizade (1768-70), de Carl von Gontard @ Sanssouci, Potsdam. IV. A ESTRUTURA DA AMIZADE e O BEM ÚLTIMO
Sócrates, porém, começa a duvidar das conclusões antes atingidas. Sem grande esforço, consegue fazer com que Menéxeno assinta em que A é amigo de B em função de x. O doente é amigo do médico com vista à saúde, a qual é um bem. «Em suma: é em vista do amigo [x], que o amigo [A] é amigo [no sentido de I.3] do amigo [B], e por causa da presença do inimigo [y; no exemplo acima, a doença]» (219b2-3). Esta repetição vertiginosa do termo amigo tem, mais uma vez, propósitos erísticos: Sócrates dirá que se chegou a nova impossibilidade, ao postular que o amigo [sentido I.3] é amigo do amigo [sentido I.2], ou seja, o igual do igual (equivalência não-válida, porque amigo é usado aqui com sentidos diferentes, que faz com que essa igualdade entre os dois elementos não se verifique). Este, porém, é um falso problema e Sócrates, que apenas pretende com ele confundir os seus interlocutores, está consciente disso e por isso avança no argumento, para o problema real que esta estrutura da relação de amizade levanta, a saber: a possibilidade de regresso ad infinitum. É que se A é amigo de B em função de x, A é, de alguma forma, amigo de x, que se torna num novo B, que, por sua vez, qua B, requere que se procure um outro x em função do qual este novo B é amado — e assim sem fim.
«Não será porventura forçoso renunciar a este caminho, ou então chegar a um ponto de partida [ἀρχήν] que não mais reconduza a um outro amigo, mas leve àquele que é o primeiro amigo, em vista do qual dizemos que todas as coisas são amigas?» (219c5-d2). É impossível sobrestimar a importância desta frase quer para o argumento do diálogo, quer para a filosofia platónica como um todo, aqui contida em ponto. O que aqui se anuncia não é outra coisa senão a Ideia do Bem, o Bem em si, o centro de toda a ontologia de Platão, mais: a possibilidade de toda essa ontologia (como aqui a possibilidade de amizade), já que o Bem, em si, como se diz na República 509b, está aquém do Ser (num certo sentido ele não é: é daqui que deriva toda a chamada teologia apofântica ou negativa). Há, portanto, um x que não se torna num novo B, porque é o x final, o verdadeiro B, o fim de facto de todo o nosso afecto. É instrutivo recordar o começo do segundo capítulo do Livro I da Ética a Nicómaco, de Aristóteles: «Se, por conseguinte, entre os fins das acções a serem levadas a cabo há um pelo qual ansiamos por causa de si próprio, e os outros fins são fins, mas apenas em vista desse; se, por outro lado, nem tudo é escolhido em vista de qualquer outra coisa (porque, desse modo, prosseguir-se-ia até ao infinito, de tal sorte que tal intenção seria vazia e vã), é evidente, então, que esse fim será o bem e, na verdade, o bem supremo» (trad: António Caeiro; Quetzal, Lisboa: 2004).
Tudo quanto amamos, amamo-lo, afinal, em função do Bem, o amigo último. É fácil agora perdoar a Sócrates o ter rejeitado a concepção de I.1, pois o Bem, como se disse, na medida em que é auto-suficiente, não pode amar nada fora de si (como o deus aristotélico que se contempla a si mesmo, incapaz de desviar o olhar para, como o deus de Berkely, observar e nisso conservar o mundo). Compreendemos também agora o aparente utilitarismo com que Sócrates via as amizades: é que elas, de facto, são apenas instrumentais no amor à única coisa que verdadeiramente amamos: o Bem, em função do qual fazemos tudo quanto fazemos. Seria como dizer que o Homem ama a felicidade e gosta por isso de estar com os seus amigos na medida em que a sua companhia o faz feliz. Por difícil que possa ser dizê-lo, mas ele ama a felicidade, não os amigos (ou estes últimos apenas com vista à primeira). Por isso, aliás, se pode chatear com eles — mas não pode não amar, sempre, a felicidade, que é coextensiva ao Bem.
V. O DESEJO COMO CAUSA DA AMIZADE
«Portanto, por causa do mal [y], o Bem é amado» (220b8). Sócrates, de imediato, começa a levantar objecções. Supondo que o mal desaparecia (possibilidade negada no Teeteto 176a5-8, negação, porém, que em nada afecta o raciocínio que aqui se desenvolve), o Bem não seria mais amado, então. «Não existindo a doença, não há necessidade de remédio» (220d4). A analogia médica de Sócrates é errónea, porque o Bem não é o remédio (um B), mas o equivalente da saúde (tomando esta absolutamente, como x que não se torna novo B), a qual não se torna inútil só por partilharmos dela. O que o filósofo pretende dizer, parece-nos, é que, alcançado x, não há mais razão para se manter a amizade com B (uma vez curado, posso dispensar o médico). O x último, o Bem, não funciona, porém, nessa lógica: ele exige Bs que, se assim o podemos dizer, o suportem. Supunhamos que o meu Bem passa por eu ser saudável. Eu amo a saúde [B] em função do Bem [x], mas não posso deixar de ser amigo de B, porque x não existe independentemente de B. Numa situação como estas, de facto, o meu y já não é o mal (a doença, neste caso), mas o meu desejo de x, o meu amor ao Bem. A própria saúde, enquanto x, funciona no mesmo esquema: ela pede certos Bs, como uma boa alimentação ou o exercício físico, que não são descartáveis, pois eu sou saudável na medida em que me alimento bem e faço exercício, condições de manutenção da saúde (o que não se pode dizer dos médicos, a que recorro excepcionalmente por causa do y doença).
É incorrecto, pois, dizer que o Bem é desejado por causa do mal: x é mais forte e fundamental do que y como motivação. É também errado postular, a priori, que x, ὅστις ποτ' ἐστίν, dispensa todos os Bs, como se alguns não fossem necessários à própria existência de x. Isto não coloca em causa a auto-suficiência do Bem, que existe independentemente de todas as suas actualizações concretas, as quais, essas sim, exigem, para cada pessoa, um conjunto de Bs, com nenhum dos quais o Bem se identifica (pode até pedir Bs opostos para pessoas diferentes). A Ideia de Planta certamente não precisa de luz solar (nem se confunde com a Ideia de Sol), mas as plantas reais sim. Sócrates vai então tentar demonstrar que é possível a permanência do desejo mesmo na ausência do mal, mas procura fazê-lo para todas as relações, o que é obviamente um erro. Os seus exemplos são particularmente maus: a fome (221a), ou seja, o desejo de A pelo x comer, resulta de um y que é a negação directa de x, o seu inimigo: a falta de comida no estômago. Ao contrário do que pretende Sócrates, ninguém tem fome ou sede em circunstâncias normais a não ser que esteja a sofrer dos males que geram esses desejos.
Os desejos (todos os desejos), na sua opinião (e bem), não são nem bons nem maus (o seu estatuto moral depende daquilo que for o Bem absoluto da pessoa concreta), pelo que o desaparecimento do mal não implicaria o fim destes. O argumento de Sócrates falha porque não leva em consideração as relações entre os seres (num diálogo que é, todo ele, sobre relações). Dizer que os desejos, porque não são maus, nada sofrem com a eliminação do mal, é como afirmar que a
Vítoria Sobre o Sol seria irrelevante para as plantas, visto sol e planta serem entes ontologicamente distintos. A conclusão principal da demonstração, é, porém, válida: «a causa da amizade é, como há pouco dizíamos, o desejo» (221d2-3),
x e não
y (mesmo nos casos em que
x só é desejado porque se verifica
y). A amizade mais do que causal é teleológica (eu sou amigo do cozinheiro não porque tenho fome - nada nisso aponta para que seja amigo dele - mas porque ele me pode dar comida). O afastamento do mal como causa da amizade é, a nosso ver, particularmente relevante no que diz respeito ao Bem último: o desejo do Bem é como a rosa, sem
porquê (e o Bem, por sua vez, sem
para quê). Não há nada que possa fazer cessar esse anelo, nem mesmo o fim do mal (também no céu, assim crêem os cristãos, os santos, longe de toda a imperfeição, continuam a amar a Deus, o Bem).
VI. O FIM & O AFIM
O fim do diálogo é particularmente confuso e apressado. Toda a discussão da secção anterior visava fornecer um novo quadro conceptual da amizade em que a amizade com B pudesse continuar apesar de A alcançar x (com consequente eliminação de y, entendido como mal, que estivera na base da amizade com B). Tal foi conseguido mostrando-se que há x's que exigem a amizade de certos Bs. y passou a ser visto não como um mal mas um desejo de x. Em 211d3-4 parece, porém, ter-se esquecido a motivação inicial para V, pois é x quem passa a ser definido como amigo: «O que deseja [A] é amigo daquilo que deseja [x]». Não deixando de ser verdade, esquece-se B.
Sócrates prossegue a sua investigação do desejo. Quem deseja, diz, deseja algo que não tem. Esta frase destrói todo o trabalho anterior, ao introduzir uma precisão linguística a que não se atendeu em todo o diálogo. De facto, ao longo da conversa entre Sócrates, Lísis e Menéxeno, registou-se grande confusão entre os campos semânticos de amor, amizade e desejo. Em V começou a isolar-se o desejo que, porém, é aqui reconfigurado como, poderíamos dizer, o amor ao que não se tem. Os resultados anteriores ficam assim em cheque: se somos amigos do que desejamos, se desejamos o que não temos, então, se temos saúde, não somos amigos da saúde — o que é um óbvio absurdo. O problema parecia ter vindo ao de cima já quando se discutiu a possibilidade de ser amigo do bem na ausência do mal (se não havia mal, tudo era bem; se tudo era bem, como se podia amar o que se tinha?). Não foi, porém, esse o caminho seguido pela argumentação socrática, que não só foi recuperar a terceira categoria (o nem bom nem mau) como se preocupou sobretudo em alterar o valor de y, mais do que com a distinção entre desejo e amor. Mais perturbador, porém, é quando Sócrates afirma que não se tem aquilo de que se foi despojado e que toda a privação é deste género (221e2-3). A afirmação é aceite por Menéxeno sem contestação, e fica por explicar (todo o desejo sendo, em última análise, do Bem, estará aqui uma referência velada à queda e encarnação da alma, que antes contemplou a Ideia?).
Sócrates introduz então, mais uma vez sem aparente motivo, uma nova terceira categoria. Não o igual, não o diferente, mas o afim. Significa o afim que na cousa amada há já sempre algo que eu partilho, um «qualquer traço de alma, carácter ou figura» em comum. Encontramos aqui, em potência, um perigoso regresso à tese de que o igual ama o igual. A introdução do conceito do afim pode ser lida como uma tentativa de explicar a susbsistência do desejo mesmo na ausência do mal: amaríamos x por x ser, de algum modo, próximo de nós. Se de facto igual ama igual, então «é inevitável que o amante verdadeiro [A] e não fingido seja amado pelo objecto dos seus amores [B]» (22a6-7), mas II.1 proibe esta leitura. Que, porém, ela está no horizonte prova-o o facto de Sócrates sentir necessidade de firmar a distinção entre o afim e o igual, que, porém, nunca é materializada. De facto, Lísis e Menéxeno atrapalham-se e acabam por, dizendo aceitar a diferença (nunca especificada) entre os dois conceitos, a abolirem, o que não pode deixar de gerar aporias (no caso, II.1.1 e II.1.2). O diálogo termina sem que se tenha descoberto a natureza da amizade.
Para que a amizade entre afins seja possível é sempre necessário postular uma diferença no grau do que é comum, pois caso contrário a amizade entre afins seria, de forma escondida, uma amizade entre iguais. A afinidade tem, por isso, de assentar numa desigualdade, suponhamos: A sabe pouco de cinema, mas gosta de filmes; B é um cinéfilo aplicado. São afins, na medida em que partilham uma paixão, mas não iguais, na medida em que um dá, o outro recebe. Num certo sentido, pode dizer-se que, no domínio do cinema, estamos perante a amizade entre um nem bom nem mau (não mau porque consciente do seu não bom) com um bom (ou bom pelo menos relativamente a ele). O conceito de afim permite salvar Homero e Hesíodo, simultaneamente: A, que é afim a B, é, a um tempo, igual a ele (visam o mesmo x), e desigual, porque a sua proximidade a esse x não é a mesma. Por fim, para que haja uma relação que não seja unilateral, é preciso supor um A e um B tais que A fosse para B uma forma de se aproximar de x1 e B para A de x2. Seriam amigos por razões diferentes, mas amigos de parte a parte.
VII. CONCLUSÃO
O que aqui se apresentou foi uma leitura tentativa do
Lísis (uma noção: V foi reescrito três vezes, sempre defendendo teses diferentes). Estamos conscientes de que, especialmente em relação à última secção, a nossa interpretação não é a mais satisfatória. É bem possível que, no todo, existam contradições ou linhas argumentativas que, prometidas, não tiveram depois desenvolvimento. Tenha-se em conta que não lemos qualquer bibliografia (tenho ao meu lado, por abrir,
este livro, que me deixa muito curioso). Para concluir, resumimos o que nos parecem as ideias centrais do diálogo:
1. Todo o desejo é amor do Bem (ou do que o sujeito toma como tal).
2. Tudo quanto amamos, queremo-lo em função desse Bem.
3. O Bem é querido por si e não pelo mal experimentado.
4. O Bem não retribui a nossa afeição: é auto-suficiente — não tendo necessidade de amar, não ama.
5. Os bens relativos (aqueles que são queridos em função do Bem) são amados alguns "por si", outros pelo mal experimentado (trata-se da diferença, acima exposta, entre Bs descartáveis e não-descartáveis).
6. A amizade é fundamentalmente uma relação unilateral, mesmo quando entre afins (os fins, x's, visados, de parte a parte, são diferentes) - o amor ao Belo, a amizade por excelência, é a manifestação mais clara dessa realidade.
7. Só pode amar quem está consciente das suas próprias limitações: quem não tem consciência da sua ignorância ou pequenez, é mau — e os maus não podem amar.
02-03.VIII.2011
τῇ φίλῃ ἀδελφῇ