quarta-feira, 29 de maio de 2013

29 de Maio — Queda de Byzantion





When he left the Cathedral [da Santa Sabedoria] the Sultan rode across the square to the old Sacred Palace. As he moved through its half-ruined halls and galleries it was said that he murmured the words of a Persian poet: 'The spider weaves its curtains in the palace of the Caesars; the owl calls the watches in Afrasiab's towers.'

Steven Runciman. The Fall of Constantinople. CUP (1965).

A 29 de Maio de 1453 a cidade de Byzâncio foi tomada no cerco de Mahmet II.

terça-feira, 28 de maio de 2013

[C3|3 #3] Ciclo Clássicos no Cinema II: 'Το βλέμμα του Οδυσσέα/O Olhar de Ulisses', de Theo Angelopoulos (1995)

O ciclo de cinema da Origem fecha-se finalmente com uma última sessão no Porto, em que exibiremos O Olhar de Ulisses, de Theo Angelopoulos, o grande realizador grego que infelizmente nos abandonou há pouco mais de um ano enquanto trabalhava nas filmagens do seu novo filme. Angelopoulos viria a ganhar com a sua obra seguinte, Eternidade e Um Dia (1998), a Palma de Ouro, mas, na altura, desabafou que o palmarés chegava atrasado, com isso reconhecendo O Olhar de Ulisses como a sua grande obra, que foi galardoada em Cannes "apenas" com o Grande Prémio do Júri. 

O Olhar de Ulisses é o filme do meio da trilogia que o realizador dedicou às fronteiras e aos Balcãs (para um resumo do argumento pelo próprio realizador, vide). O personagem principal, um realizador de nome A., percorre a península em busca das bobines do primeiro filme dos irmãos Manakis, os pioneiros do cinema nos Balcãs. A sua viagem replica, de alguma forma, as deambulações de Ulisses e, como o herói clássico, nas suas paragens vai-se cruzando com misteriosas mulheres, que são uma e muitas, a tempos encarnando Circe, Nausícaa, Calipso, Penélope. 

O filme é duplamente pertinente, não só por esta revisitação do motivo homérico (que, de resto, reaparece noutros pontos na obra do realizador) como pela interrogação que constitui sobre a Grécia moderna e, até mais amplamente, sobre os Balcãs (grassava então a guerra em Sarajevo, cujas ruínas são o cenário de fundo de uma das cenas mais belas de toda a filmografia do autor e, quiçá, de todo o cinema). Fica o convite a este desafio de pensar os gregos, velhos e novos, a partir desta meditação filmada de Angelopoulos. Para nos orientar e estimular, teremos connosco Joana Matos Frias, professora da FLUP, que, no início,  nos dará algumas pistas de leitura da obra, em torno da qual conversaremos todos no fim.  


O OLHAR DE ULISSES, de Theo Angelopoulos 
apresentado por Joana Matos Frias
legendas em inglês 

31 de Maio, 18h30 
Sala 201, Faculdade de Letras,
Universidade do Porto, Porto

segunda-feira, 27 de maio de 2013

'Hairdo Archaelogist' solves ancient fashion archaelogist

Para vocês que, tal como eu, sempre se perguntaram como é aquelas romanas faziam os seus penteados, aqui vai.*

*Esperando que o BBC iPlayer funcione desse lado, se não, eis o link no youtube. 


sexta-feira, 24 de maio de 2013

Ancient Lives Project


Schoolchildren, pensioners and office workers are helping scholars at Oxford University to transcribe 2,000-year-old documents. In the 1890s archaeologists dug up a huge haul of papyri written in ancient Greek in Oxyrhynchus, Egypt. But until last year, scholars had managed to translate just 1% of them. Now the Ancient Lives project has enlisted thousands of internet users, who have already helped to transcribe more texts than diligent scholars had managed in the previous 100 years. Everything from shopping lists to a new gospel has been revealed in this extraordinary example of 'citizen science'.

Eles Não Fogem
















De 15 Books You Should Definitely Not Read in Your 20s

Lives of the Noble Greeks and Romans, Plutarch Someday you’ll get to this one, and you’ll be a better person for it. But really, there’s no rush. The Romans aren’t going anywhere.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Vergil and Homer

Perhaps Homer gives all that mankind should need, but it was left to Vergil to give much that mankind does in fact need. Vergil reaches, as Homer does not, into the organization and the complexities of the later and the modern world. He thought through politics to mystic perception, and passed beyond pure epic tragedy. Perhaps he could succeed because he also reached farther back in time than Homer. He remembers the old Aegean world and its oriental pre-history more clearly, and often he restores something which in Homer is a broken tale. A safe and sufficient example is provided by the city-sanctities at Troy; on such matters it is proper to wait until evidence is arrayed for a full statement, but fragments of support are always occurring. Vergil's emphasis on Buthrotum, where as Leaf humorously noted he made no attempt at topographical accuracy, fits the distant truth concerning the passage of the Philistines indicated by Giuliano Bonfante. Johm Garstang has reported from Syria a Hittite statue of the eighteenth century B.C. with a face of stern, responsible lineaments, representing some governor, clearly a man under authority living as by law of European duty. Such a man is not Homeric. He is Vergilian. But most important is Vergil's progress towards the Divine. For him the human is not enough. Vergil won the conviction that, in words used by Father E. Watts, and quoted by Murray Hickey Lee, 'God is not niggardly in his revelations' and that 'in every moment is an eternity'. Or perhaps that too is to misunderstand Homer. At least Alexander Pope was right to say, with a Vergilian depth of meaning yet to be explored, that Vergil found that 'Homer and nature were the same'.

W. F. Jackson Knight. Vergil and Homer. Basil Blackwell Oxford (1950).

quinta-feira, 16 de maio de 2013

AULA


(um dos muitos poemas que a Origem tem na secção "Poemas roubados à Patrícia")

Nosso Profe. de latim, Mestre Aristeu, era magro
e do Piauí. Falou que estava cansado de genitivos
dativos, ablativos e de outras desinências. Gostaria
agora de escrever um livro. Usaria um idioma
de larvas incendiadas! Epa! o profe. falseou-ciciou
um colega. Idioma de larvas incendiadas! Mestre
Aristeu continuou: quisera uma linguagem que
obedecesse a desordem das falas infantis do que
das ordens gramaticais. Desfazer o normal há de
ser uma norma. Pois eu quisera modificar nosso
idioma com as minhas particularidades. Eu queria
só descobrir e não descrever. O imprevisto fosse
mais atraente do que o dejá visto. O desespero
fosse mais atraente do que a esperança. Epa! o
profe. desalterou de novo – outro colega nosso
denunciou. Porque o desespero é sempre o que não
se espera. Verbi gratia: um tropicão na pedra
ou uma sintaxe insólita. O que eu não gosto é
de uma palavra de tanque. Porque as palavras do
tanque são estagnadas, estanques, acostumadas.
E podem até pegar mofo. Quisera um idioma de larvas
incendiadas. Palavras que fossem de fontes e não
de tanques. E um pouco exaltado o nosso profe.
disse: Falo de poesia, meus queridos alunos. Poesia
é o mel das palavras! Eu sou um enxame! Epa!...
Nisso entra o diretor do Colégio que assistira
a aula de fora. Falou: Seo Enxame espere-me no
meu gabinete. O senhor está ensinando bobagens
aos nossos alunos. O nosso mestre foi saindo da
sala, meio rindo a chorar.

Manoel de Barros

domingo, 12 de maio de 2013

A parábola dos talentos — A herança clássica & a grafia do Latim


Há duas grafias vigentes actualmente a nível mundial para a língua latina, que poderemos classificar em termos gerais como a italiana e a restaurada. A grafia italiana, ao contrário da pronúncia italiana (também dita com mais rigor eclesiástica), encontra-se espalhada muito para fora das fronteiras italianas, e identifica-se facilmente pela atitude face às semi-vogais u e i: adopta as mesmas regras que a língua italiana, que algures nos séculos XVIII/XIX se decidiu finalmente a expulsar a letra "j" do seu alfabeto, substituindo o seu som pelo conjunto gi (Giovanni = Jovanni etc), ao mesmo que mantem a letra v nos lugares habituais. A grafia italiana escreve, por exemplo,
 vi superum, saevae memorem Iunonis ob iram.
A outra grafia, dita restaurada, e actualmente em vigor nas universidades portuguesas, data também  ela do século XIX, e apoia-se na convicção de que a grafia do latim deve prescindir de grafar as semi-consoantes [w] e [y] com caracteres diferentes, visto que a grafia romana antiga não fazia distinção na escrita entre elas, e que portanto não faz sentido aplicar regras gráficas posteriores à edição de textos antigos. Segundo esta grafia, o verso acima citado aparecerá escrito assim:
ui superum, saeuae memorem Iunonis ob iram.
Interessa-me em particular analisar a segunda grafia. A língua italiana tem uma longa história de confrontos com a latina, a começar com o século XIV e com o problema dos ditongos desvendados em inscrições pelos primeiros arqueólogos renascentistas (leitores medievais terão escrito e lido o verso acima citado como «vi superum, seve memorem Junonis ob iram»), e a grafia acima citada é mais um passo nesse confronto. Não me parece nem consistente nem historicamente nem metodicamente, mas, e aqui jaz toda a diferença, não se gaba de o ser, assume a posição digna e honesta de ser a grafia duma língua com nexos históricos muito apertados a uma outra, e por isso há poucos motivos para a contestar. Por outro lado, a grafia restaurada deriva a sua autoridade vinculativa do facto de reclamar para si a transmissão do uso e da herança clássica, e compete-nos analisar essa afirmação mais à lupa.

Antes de mais, o que queremos dizer quando queremos imitar o modo de escrita antigo? Parece que afirmamos que estamos a escrever como 'eles', sendo que 'eles' aparecem frequentemente definidos como os romanos da época clássica, o chamado Latim Dourado, donde retiramos também a pronúncia restaurada, e cuja gramática já desde Quintiliano aparece citada como o modelo a imitar para quem quer que pretenda escrever Latim (sobre a história das letras latinas como uma recuperação ou uma reacção específicamente a Cícero, ver Stroh). Ora qualquer aluno de licenciatura em Estudos Clássicos sabe que, como quer que seja a maneira de entendermos a materialidade da escrita clássica, quando quer que escrevemos latim estamos a milhas de distância. Citemos apenas alguns exemplos:

  • os Romanos tinham pelo menos dois tipos de letras, um cursivo e um digo capital: não os misturavam jamais (podemos entendê-los como fonts do computador!), e, tal como, por exemplo, o alfabeto hebraico, não utilizavam versões maiúsculas ou minúsculas. A versão minúscula do nosso alfabeto não datará de antes do século IX, e a mistura dos dois tipos de letra para efeitos de facilitação de leitura de ainda mais tarde. Isto significa que não marcavam os inícios de frases com maiúsculas, nem nomes próprios, nem nenhuma dessas comodidades.

  • os Romanos não separavam palavras ao escrever: era uma massa contínua de texto.

  • Não utilizavam pontuação. Vírgulas, pontos finais, pontos de interrogação, aspas etc, não figuravam da grafia romana. A única excepção era um ponto como este: · utilizado em inscrições como em  Grego para marcar uma pausa indeterminada. Isto obrigou a que muitas vezes certas palavras assumissem quase funções diacríticas; um exemplo disso é o inquit, que responde ao grego ὅτι.

  • Faziam por vezes a distinção entre i e j , ora para grafar os sons diferentes de [i] e de [ī]  (ver aqui e aqui) ou a distinção entre vogal e semi-consoante (entre [i] e [y]), costume ignorado pela grafia restaurada (e que opõe a que grafemos as semiconsoantes). De facto, ao escrever em cursiva, era frequente grafar o I semi-consonântico (portanto, [y] e não [i]) de forma mais alongada. Numa ironia face à grafia italiana contemporânea, pessoalmente não conheço nenhum caso em que salvaguardassem a distinção entre u e v  (portanto, visto que não havia minúsculas, veríamos sempre escrito V).

  • Marcavam muitas vezes as vogais longas — outro pormenor comodamente ignorado quando defendemos a grafia restaurada. Isto diz-nos Quintiliano (o que demonstra também que na sua época a distinção entre longas e breves estava já em queda livre), que prescreve sempre que sempre que possível se marquem as longas com um apex: á é etc, e considera absolutamente indispensável em situações onde se possam originar confusões semânticas: por exemplo, málum e malum. Esta distinção entre longas e breves com o apex aparece também em inscrições.

  • Marcavam também, nas inscrições, as chamadas ligaduras, mas não pelas razões pelas quais mais tarde se adoptaram: vemos em inscrições Æ em lugar de AE, Œ em lugar de OE, mas também ligadores de AT, AB, e basicamente tudo: eram feitas para se poupar espaço, à maneira de abreviaturas de 'ã' para significar 'am'. Mas utilizavam-se. De modo que os dois primeiros versos do canto quarto da Eneida seriam algo como:

ATREGINAGRAVIIAMDVDVMSAVCIACVRÁ
VVLNVSALITVENISETCÆCOCARPITVRIGNI

Uma grafia que se pretendesse realmente restaurada teria que ser algo deste género. Escusado será dizer que não é isso que praticamos, e que a grafia que se diz restaurada está bem longe de o ser. Importa tirar daqui conclusões.

A língua latina tem uma história absolutamente fascinante. Como língua franca do Mediterrâneo, da Europa, e mais tarde do globo, teve uma morte relativamente precoce. Como dizíamos acima, o referente de Cícero impôs-se muito cedo como modelo: a retórica de Santo Agostinho era do orador romano, o que seria algo como hoje aprendermos a falar como o Padre António Vieira. Mas embora a língua, o vocabulário, e principalmente a gramática e a sintaxe se terem cristalizado muito muito cedo, ou talvez precisamente por esse motivo, a língua espalhou-se e cresceu bem para além das fronteiras do Imperium Rōmānum: evoluções passíveis de serem adoptadas para facilitar o uso da língua foram acolhidas não para se escrever melhor os vernáculos mas para se escrever melhor o Latim: foi para o Latim que se separaram as palavras, que se inventou a pontuação, e finalmente que se começou a praticar a (na altura) estranha prática de juntar maiúsculas e minúsculas no mesmo texto para tornar o texto mais legível, mais elegante, e para potenciar as suas capacidades retóricas (é graças a isso, por exemplo, que podemos substantivar um verbo, ou dar mais importância a uma palavra iniciando-a com maiúsculas).

Uma outra evolução material da língua, no sentido de a tornar ainda mais clara, deu-se no campo das ligaduras. Como dizia acima, os romanos já conheciam a noção de ligadura, mas o uso que faziam delas era um uso mais relativo à economia do espaço de escrita do que propriamente de tirar delas algum proveito mais sério. Aquilo que começamos a ver principalmente no Renascimento (o epistolário de Coluccio Salutati e de Leonardo Bruni aparecem-nos como primeiros testemunhos duma atitude reacionária ao comportamento que viria a ser vigente) é a utilização de 'æ' para o ditongo, para desse modo guardar 'ae' para casos de hiato, eliminando-se aí a confusão entre palavras como aeris e æris (genitivos respectivamente de aer e de æs); o mesmo para palavras com œ e oe. Tiramos daqui uma conclusão extremamente inspiradora: os estudiosos que firmaram esta prática aperceberam-se dum uso irregular junto dos antigos, e não se sentiram coagidos a segui-lo, antes fizeram uso dum recurso material para tornar a língua antiga ainda mais inteligível, precisamente no espírito dos próprios antigos, como o supra-citado Quintiliano, que não manifestava pruridos em relação a alterar o modo de escrita, porquanto daí podiam advir vantagens sem dessa forma deturpar fosse o que fosse.

Uma outra evolução paralela às ligaduras diz respeito ao uso das semi-vogais. Este é o grande cavalo de batalha da pronúncia restaurada, mas estou em crer poder provar que não só é insuficiente como até mesmo contraditório. Porque juntamente com a reforma progressiva da grafia do Latim que deu origem às ligaduras, deu-se também um uso cada vez mais rigoroso na escrita das semi-consoantes: enquanto em alguns textos impressos vemos ainda escrito 'v' unicamente por aparecer a início de palavra ('vua' para 'uva'), no século XVI já observamos o critério (a meu ver) sensato de guardar o v para exprimir o som que em latim fora [w], ou seja, equivalente ao inglés w em what. Nenhum Romano alguma vez tinha utilizado esta distinção, embora tivessem utilizado a distinção entre o I e o I alongado em início de frase. O que se começa a marcar é a distinção entre i vocálico e j semi-consonântico: para tal utilizou-se o j. Isto levou a que se pudessem pela primeira vez distinguir entre jam (1 sílaba), conjicere (4 sílabas), iambus (3 sílabas), juvenis (3 sílabas) sem necessitar de conhecimento prévio. Um dos grandes argumentos para a eliminação do número gigantesco de abreviaturas nos textos medievais e do primeiro renascimento era a dificuldade que era ler: a eliminação das abreviaturas permitia que se aprendesse melhor e mais depressa a língua (vemos o mesmo problema na aprendizagem e condenação a priori contemporânea do mandarim). Facilitar a aprendizagem da leitura foi nada menos que dar um passo avante na democratização da lingua gentium, concedendo-o a mais pessoas.

O Renascimento levou também a peito a exortação de Quintiliano: a língua é para se utilizar, onde podermos facilitar essa lei sem a deturpar na sua natureza lexico-sintática, façamo-lo. De tal forma que a edição da Ethica de Espinosa regista a Proposição I.V da seguinte forma:
In rerum naturâ non possunt dari duæ, aut plures substantiæ ejusdem naturæ, sive attributi.
Porquê complicar a linguagem? É um ablativo e queremos que fique claro? Marquêmo-lo, para que não haja dúvidas: a nossa devoção está para com os nossos leitores futuros. Os mesmos Renascentistas tentaram outras práticas ainda mais ousadas. Aperceberam-se de que em vários casos havia duas palavras efectivamente idênticas mas com sentidos absolutamente idênticos: cum (proposição) e cum (conjunção), e decidiram-se a grafar o segundo por quum, para que ao ler não pudesse haver dúvidas (Quum Cæsar profectus esset cum parvâ militum manû…), ou então por cúm. Foi das poucas que não pegou, mas houve outras, como a distinção entre ne (ut non) e ne (profecto!) que passaram a ser grafadas como ne e (inicialmente devido à falsa etimologia com ναί, mais tarde de forma conscientemente artificial); assim como entre oppido (ablativo/dativo de oppidum) e oppido (valde), que passaram a ser grafados como oppido e oppidó (alguns textos assinalam todos os advérbios em com o apex, e não apenas os mais raros: vemos portanto certó, necessarió, etc), e mais.

Algo relativamente importante a lembrar é que estas propostas gráficas são um problema distinto da pronúncia, que é um tema completamente diverso. Escrever ‘j’ para a maior parte das pessoas não significa pronunciar [j], significa pronunciar [y]; escrever ‘v’ significa pronunciar [w]: com este tipo de grafia a língua latina não deixa de ser uma língua completamente fonética, aliás torna-se ainda mais fonética, pois o símbolo u e o símbolo i, que na restaurada ocupavam cada um deles dois fonemas ([u] e [w], [i] e [y]), passam a estar numa situação absolutamente clara e sem confusões.

O que interessa daqui reter? Que houve em tempos uma história de relacionamento com a língua que se entendia com muitos mais direitos e muito menos subserviente para com o legado da Antiguidade do que nós hoje, por muita coisa que tenha acontecido entretanto. Importa porém deixar em ênfase antes do mais que esse tipo de relacionamento não implicava de maneira alguma falta de rigor filológico ou de seriedade de investigação. O maior exemplo disso (como de tantas outras coisas) é o próprio Erasmo, o primeiro a propor a existência da pronúncia erasmiana do grego, da qual deriva com meia dúzia de alterações, a actual pronúncia restaurada do Grego. Quando Erasmo publica, no seu De recta latini græcique sermonis pronuntiatione (1528), não lhe passava pela cabeça que viesse a ser adoptada: a pronúncia que ele utilizava, essencialmente grego antigo lido com a pronúncia moderna, parecia-lhe trazer muitos mais benefícios, a começar pela compreensão da língua grega contemporânea, e que esses benefícios ultrapassavam a mera rectidão histórica; compreendia bem que há alturas em que filologia não é um deus a ser venerado, e que está ao nosso serviço, que a podemos cultivar e estudar sem nos deixarmos consumir por ela.

Foi isso infelizmente que aconteceu no século XIX. Já aqui escrevi algumas das minhas opiniões sobre o movimento, principiado nos Estados Alemães, ao qual hoje podemos chamar, com retrospectiva histórica, a ascensão da Ciência da Antiguidade — Altertumswissenschaft. Qualquer um entende que daí vieram muitos bens, a começar pelo rigor de trabalho e pela perspectiva histórica acentuada. Mas esses bens, que enquanto acessórios teriam sido impagáveis, arrogaram-se direitos bem maiores que os que lhes eram devidos. Como indica Silk, isto foi o fim «of the long era in which classical studies and classical scholars —and not merely classical ideals— occupied a place in the vanguard of western culture». O que aconteceu, ao fim ao cabo, foi que se instalou nos espíritos dos Estudiosos da Antiguidade, um espírito de subserviência para com a Antiguidade, ou pelo menos um espírito de mortificação: nos mortos não se toca, os antigos são agora objecto de estudo. A nós não nos podem dizer nada directamente, e qualquer contacto que tenhamos com eles será falso e o máximo que poderá fazer é conspurcá-los. Temos que recriar tudo tal e qual eles o fizeram, sem deixar entrar nada de nós.

No que à grafia diz respeito, creio já ter provado que isso é falso: mesmo as edições mais consagradas jamais prescindiram, algo hipocritamente, de cómodos totalmente desconhecidos aos Antigos como a separação de palavras, maiúsculas, assim como, armados a crivo de ouro, passaram em falso de maneira arbitrária práticas já existentes como marcação das longas, marcação da semi-consoante j, etc — que eu saiba, o único crítico que ousou pagar o preço do fundamentalismo a ponto de ser coerente foi o florentino Angelo Poliziano, que editou Calímaco sem espíritos nem acentos devido ao facto de o poeta alexandrino ter vivido antes do inventor desses diacríticos, Aristófanes de Bizâncio.

As actuais práticas de grafia têm por sua vez o problema de que ser coerente só até metade é a definição de incoerência: ou se seguiria a toda a linha os métodos antigos, o que ninguém quer nem ninguém deveria querer, ou chegamos no nosso exame de auto-crítica à conclusão de que a grafia restaurada foi um passo em falso, e que urge portanto abandoná-la. Voltar à grafia pré-XVIII do Latim é um passo que tornará o Latim não só muito mais legível e fácil de aprender (nunca mais teremos confusões e gafes como i-uu-e-nis), permitir-nos-á criar pontes visuais muito mais próximas com o português, e algumas delas, como a marcação das longas de peso semântico, aumentarão a destreza de leitura de qualquer pessoa.

É certo que uma reforma da grafia está longe de ser o nosso problema principal na nossa relação com a língua: tais considerações são porém um primeiro passo, por humilde que seja, no confronto com o problema espiritual de compreendermos a nossa relação com a Antiguidade, o fundamento espiritual da Herança: o que é que significa atermo-nos ao que é Antigo? Onde é que podemos ir mais além? Onde ficar, onde modificar, e porquê? Antigo porque Antigo? Do Antigo, o que é que é nosso? Desde que a ouvi tornei-me um fã da frase do classicista alemão Willamowitz: Para fazer os Antigos falar temos que lhes dar de beber do nosso próprio sangue. E isso significa reclamar para nós a Herança antiga, como um tesouro que nos foi legado. No caso em questão, de quem é o Latim? É tanto nosso quanto foi dos Romanos, é tanto de Espinosa quanto foi de Ovídio.

Pensando nisto lembro-me sempre da parábola que dá o nome a este artigo, a parábola dos Talentos narrada por Mateus e Lucas. Dos três filhos, dois aumentam-na, o terceiro preserva-a tal como lhe tinha sido entregue. Ora a filologia clássica tem de resistir com todas as forças do seu espírito a ser o terceiro filho, a limitar-se a ser a guardiã. É essencial, naturalmente, que não perca o que lhe foi confiado, que não o deturpe: mas estou em crer que limitarmo-nos a preservar aquilo que nos foi legado é não ser capaz de lhe reconhecer o valor, não tomar nas nossas mãos esta herança é perdê-la e mortificá-la. Para não sermos o terceiro filho temos de saber cumprir a tarefa difícil de fazer com que os Antigos não percam a sua voz mas nos falem mais de perto, que se não os puxamos para nós, como o anjo, nós que vamos avançando acabaremos por os perder sob os nossos olhos.



Apêndice I.
Proposta para uma Grafia Moderna.

  • Utilização das ligaduras æ e œ para sinalizar os ditongos, e ae e oe os hiatos (æs, aer, cœpit, coegit). Em alternativa, marcar incondicionalmente os hiatos por aë  e oë (aes, aër, coepit, coëgit).
  • Utilização do j e do v para marcar as semi-consoantes, e do i e do u para as vogais.
  • Marcação das sílabas longas consistentemente todas, ou pelo menos as de influência semântica (fūgit pretérito vs fugit presente) com o apex (acento agudo) ou com o macron (¯).
  • Utilização de maiúsculas e minúsculas segundo as regras gráficas das línguas românicas contemporâneas.

Apêndice II.

No ficheiro acima disponibilizo um teclado que eu próprio criei (na altura para uso próprio) que permite a inserção fácil de todos os caracteres acima citados. A barra \ passa a funcionar como tecla morta para inserir com æ (a), œ (o), ß (b), þ (t), ð (d), — (-) assim como versões maiúsculas de todas estas letras (Æ, Œ, ẞ, Þ, Ð). A tecla < passa a funcionar como tecla morta para inserir ā (a), ē (e), ī (i), ō (o), ū (u), ȳ (y), assim como versões maiúsculas (ĀĒĪŌŪȲ); se se pressionar a tecla Shift com a <, surgirão as versões com o breve ă (a), ĕ (e), ĭ (i), ŏ (o), ŭ (infelizmente não consegui acrescentar o y com breve, por não estar presente no plano de caracteres Unicode), assim como as maiúsculas (ĂĔĬŎŬ).



Agradeço encarecidamente todas as sugestões e críticas aos argumentos apresentados e todo o debate suscitado.

Amanhã — E Depois

Prof. Doutora Marta González González, da Universidade de Málaga,
na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra


- Dia 13, segunda-feira, 16:30-18:00, sala 13:
“Las edades de las mujeres en la epigrafía e iconografía funerarias”

- Dia 15, quarta-feira, 16:00-18:00, sala SIC:
“Los epigramas de Nóside de Locris”
(esta aula será repetida no dia seguinte: quinta-feira, 9:00-11:00, sala 1)

Marta González González é desde 2003 Professora Titular de Filologia Grega na Universidade de Málaga. Tem desenvolvido a sua investigação no domínio da literatura, religião e mitologia gregas. É autora de Nóside de Locris y su obra (Madrid, Ediciones Clásicas, 2006) e co-autora, com Ana Iriarte, de Entre Ares y Afrodita. Violencia del erotismo y erótica de la violencia en la Grecia Antigua (Abada, Madrid, 2008, reimp. 2010). Da sua vasta bibliografia, citamos algumas das obras de tradução: Poemas de amor y muerte en la Antología Palatina, ed. de C. Rodríguez Alonso y M. González González (Madrid, Akal Clásica, 1999); Plutarco, Vidas de Dión y Bruto, Vidas Paralelas VII (Madrid, Biblioteca Clásica Gredos, 2009) e Vidas de Agis y Cleómenes, Tiberio y Gayo Graco, Vidas Paralelas VIII (Madrid, Biblioteca Clásica Gredos, 2010).