sábado, 6 de abril de 2013

Comentário a 'A Terceira Miséria' de Hélia Correia


O único livro até à data que li da Hélia Correia, A Terceira Miséria (Relógio d'Água 2012) acho que quer ser uma análise una cum grito lancinante de dor sobre a Grécia actual e antiga, a poesia, e essas coisas. Com isso em vista a nossa poetisa conjura Hölderlin e Nietzsche para que, sendo como são poetas dos rios santos, desaguem nela Terceira Profetisa (um pouco como o 'Screvo meu livro). Isto porque toda a gente sabe que um livro de poesia a sério tem que falar de poetas. Portanto um livro de poesia que fala sobre poetas que falaram de poetas tem a vida feita. O único problema é que a Grécia de Hélia Correia se resume aos clichés das colunas corínthias, (mas será a minha Grécia diferente? takes one to know one): porque a Grécia dela é a de Winckelmann, a Grécia dela é “bondosa” [21], é algo anestesiado, que existiu para que a Hélia pudesse agora ter saudades dela. A visão excessivamente simplista deste livro, onde a questão do Hölderlin Wozu Dichter in dürftiger Zeit [Para quê poetas em tempos indigentes] (citada n vezes) é entendida à base de lágrimas devidas à “arrogância / pela qual o ocidente se perdeu” [25].

Ora a prepotência com que este livro nos dá lições de moral e incentivos ao pranto é quase pornográfica. A Grécia nunca foi apenas as colunas, nunca foi apenas o brilho do Sol do templo de Apolo que bate nas praias de Tróia. Falem-me em arrogância e eu lembro-me de Athenas, lembro-me da Sicília, lembro-me dos pactos traidores de Delos. Falam-me de bondade? Dificilmente me vem à mente algum grego que eu tivesse facilidade em caracterizar como “bom”: As cintilas divinas de Socrátês são arrogantes; Antigónê é dinamite, augustamente cega. Mas é esta visão passada a lixívia que fica bem passar de Héllas, é certamente mais agradável que encarar o abysmo nos olhos. O problema é que só dois mil anos mais tarde é que nos vamos apercebendo que Platão nunca fez mais nada que troçar de nós: mas merecemo-lo, pois quando ele nos diz que depois de sairmos da caverna acabaremos por nos habituar à luminosidade a ponto de conseguirmos olhar directamente para o Sol, não houve ninguém que o denunciasse? Quem se habitua à luz do sol na íris? O claro e distinto λόγος da Grécia não é algo bonito: é algo que cega e é cruel.

Aiskhylos sabia disso. Hölderlin sabia isso, sabia disso e sabia da crueldade de Zeus (“in den Abgrund habst du den heilgen Vater einst verwiesen”). E também Nietzsche sabia, Nietzsche de quem a Hélia Correia se escapole desviando a atenção para o nazismo [20; 22] e recusando-se a afrontá-lo (ou seja, escolhe o alvo mais fácil fugindo do arauto, ao qual não dedica mais que quatro versos [18]). É cobardia, cobardia porém compreensível: lendo-o somos confrontados com uma Grécia que é mais terrível que a pólis domesticada [33] e encontramos outra de terrível magnanimidade, mais violentamente justa que os tyranos de Píndaro, mais por vezes obscura que a noite do mundo na qual Hölderlin dizia habitar. São coros e choros, imagino porém eu que ela esteja consciente do passo em falso: pois um verso dá o mote, uma “meia linha” como ela diz [1], mas o resto entenebrece. E qual é o resto?

Aber sie sind, sagst du, wie des Weingotts heilige Priester,
Welche von Lande zu Land zogen in heiliger Nacht.

A noite é santa. Como dizia o centauro do Pasolini, tudo é santo, Hélia. Tu que citas com louvor Péricles que dizia “Não lutamos a mando de ninguém” [8], lembra-te de que imitar os antigos não é fazer o que eles faziam mas agir como eles. Não lutemos a mando de ninguém, nem sequer da Grécia; tu própria deves ter percebido disso quando falaste da Grécia que hoje é (e louvada sejas por tomares uma atitute antagónica à de muitos classicistas): ora a Grécia Antiga é inservível àquela que hoje é, e isso vale para cada uma das misérias do espírito do mundo; cada uma dessas misérias, acertaste, é uma "colecção dos feitos / e defeitos humanos, um início". As trevas e a miséria que hoje há são outras sempre, mas até as trevas são santas, até as nossas trevas são santas. 

Dito isto, sinceramente entrego os parabéns & χάριν pelo leitura concedida. Mesmo depois destas palavras, quero dizer que o livro recompensa a leitura: são, aliás, em muitos passos, verdadeiramente-belos. Se assim não fosse, se assim não julgasse, não teria perdido o meu tempo a escrever sobre eles. Mas é precisamente trabalho assim que é mais interessante afrontar: trabalho que se respeita e no qual se reconhece um opositor à altura. Nesse sentido a Hélia Correia, o que ela representa (uma versão Primavéra Árabe da Sophia + Maria Helena da Rocha Pereira), embora sendo um inimigo, é quem faz com que escrever isto valha a pena.

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