O único livro até à
data que li da Hélia Correia, A Terceira Miséria
(Relógio d'Água 2012) acho que quer ser uma análise una cum grito lancinante de dor sobre a Grécia actual e antiga, a poesia, e essas coisas. Com isso em vista a nossa poetisa conjura Hölderlin e
Nietzsche para que, sendo como são poetas dos rios santos, desaguem
nela Terceira Profetisa (um pouco como o 'Screvo meu livro). Isto porque toda a gente sabe que um livro de poesia a sério tem que falar de poetas. Portanto um livro de poesia que fala sobre poetas que falaram de poetas tem a vida feita. O único problema é que a Grécia de Hélia Correia se resume aos clichés das colunas corínthias, (mas será a minha Grécia diferente? takes one to know one): porque a Grécia dela é a
de Winckelmann, a Grécia dela é “bondosa” [21], é algo
anestesiado, que existiu para que a Hélia pudesse agora ter saudades dela.
A visão excessivamente simplista deste livro, onde a questão do Hölderlin Wozu Dichter in dürftiger Zeit
[Para quê poetas em tempos indigentes] (citada n vezes) é entendida à base de
lágrimas devidas à “arrogância / pela qual o ocidente se perdeu”
[25].
Ora a prepotência com que este livro nos dá lições de moral
e incentivos ao pranto é quase pornográfica. A Grécia nunca foi
apenas as colunas, nunca foi apenas o brilho do Sol do templo de
Apolo que bate nas praias de Tróia. Falem-me em arrogância e eu
lembro-me de Athenas, lembro-me da Sicília, lembro-me dos pactos
traidores de Delos.
Falam-me de bondade? Dificilmente me vem à mente algum grego que eu
tivesse facilidade em caracterizar como “bom”: As cintilas
divinas de Socrátês são arrogantes; Antigónê é dinamite,
augustamente cega. Mas é esta visão passada a lixívia que fica bem
passar de Héllas, é certamente mais agradável que encarar o abysmo
nos olhos. O problema é que só dois mil anos mais tarde é que nos
vamos apercebendo que Platão nunca fez mais nada que troçar de nós:
mas merecemo-lo, pois quando ele nos diz que depois de sairmos da
caverna acabaremos por nos habituar à luminosidade a ponto de
conseguirmos olhar directamente para o Sol, não houve ninguém que o
denunciasse? Quem se habitua à luz do sol na íris? O claro e distinto λόγος
da
Grécia não é algo bonito: é algo que cega e é cruel.
Aiskhylos sabia disso. Hölderlin
sabia isso, sabia disso e sabia da crueldade de Zeus (“in den
Abgrund habst du den heilgen Vater einst verwiesen”). E também
Nietzsche sabia, Nietzsche de quem a Hélia Correia se escapole desviando a
atenção para o nazismo [20; 22] e recusando-se a afrontá-lo (ou
seja, escolhe o alvo mais fácil fugindo do arauto, ao qual não
dedica mais que quatro versos [18]). É cobardia, cobardia porém
compreensível: lendo-o somos confrontados com uma Grécia que é
mais terrível que a pólis domesticada [33] e encontramos outra de terrível magnanimidade, mais violentamente justa que
os tyranos de Píndaro, mais por vezes obscura que a noite do mundo
na qual Hölderlin dizia habitar. São coros e choros, imagino porém
eu que ela esteja consciente do passo em falso: pois um verso dá o
mote, uma “meia linha” como ela diz [1], mas o resto entenebrece.
E qual é o resto?
Aber
sie sind, sagst du, wie des Weingotts heilige Priester,
Welche
von Lande zu Land zogen in heiliger Nacht.
A
noite é santa. Como dizia o centauro do Pasolini, tudo é santo,
Hélia. Tu que citas com louvor Péricles que dizia “Não lutamos a
mando de ninguém” [8], lembra-te de que imitar os antigos não é
fazer o que eles faziam mas agir como eles. Não lutemos a mando de
ninguém, nem sequer da Grécia; tu própria deves ter percebido disso quando falaste da Grécia que hoje é (e louvada sejas por tomares uma atitute antagónica à de muitos classicistas): ora a Grécia Antiga é inservível àquela que hoje é, e isso vale para cada uma das misérias do espírito do mundo; cada uma dessas misérias, acertaste, é uma "colecção dos feitos / e defeitos humanos, um início". As trevas e a miséria que hoje há são outras sempre, mas até as trevas são santas, até as
nossas trevas são santas.
Dito isto, sinceramente entrego os parabéns & χάριν pelo leitura concedida. Mesmo depois destas palavras, quero dizer que o livro recompensa a leitura: são, aliás, em muitos passos, verdadeiramente-belos. Se assim não fosse, se assim não julgasse, não teria perdido o meu tempo a escrever sobre eles. Mas é precisamente trabalho assim que é mais interessante afrontar: trabalho que se respeita e no qual se reconhece um opositor à altura. Nesse sentido a Hélia Correia, o que ela representa (uma versão Primavéra Árabe da Sophia + Maria Helena da Rocha Pereira), embora sendo um inimigo, é quem faz com que escrever isto valha a pena.
Dito isto, sinceramente entrego os parabéns & χάριν pelo leitura concedida. Mesmo depois destas palavras, quero dizer que o livro recompensa a leitura: são, aliás, em muitos passos, verdadeiramente-belos. Se assim não fosse, se assim não julgasse, não teria perdido o meu tempo a escrever sobre eles. Mas é precisamente trabalho assim que é mais interessante afrontar: trabalho que se respeita e no qual se reconhece um opositor à altura. Nesse sentido a Hélia Correia, o que ela representa (uma versão Primavéra Árabe da Sophia + Maria Helena da Rocha Pereira), embora sendo um inimigo, é quem faz com que escrever isto valha a pena.
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