quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Filosofia Política Clássica vs Moderna X

William Blake (1820), The Spirit of Plato. 
—Não diremos que há nas estórias antigas alguma verdade?
— A quais te referes?
— Às que falam das múltiplas destruições dos seres humanos por dilúvios, doenças e outras tantas coisas, [catástrofes] nas quais apenas uma pequena parte do género humano foi poupada.
— Tal parece totalmente credível a qualquer um.
— Ora então. Consideremos uma só destas muitas, aquela que ocorreu aquando do dilúvio.
— Que coisa havemos de pensar acerca dela?
— Que os que escaparam à destruição seriam quase todos pastores de montanha, pequenas centelhas do género humano, salvos nos cumes.
— Pois claro.
— E estes, necessariamente, eram inexperientes em todas as artes [...]  E da cidade, da constituição, do legislar, de todas estas coisas de que se ocupa o nosso discurso, acaso julgaremos que havia, por assim dizer, sequer memória de todo?
— De modo nenhum.

{ΑΘ.} Ἆρ' οὖν ὑμῖν οἱ παλαιοὶ λόγοι ἀλήθειαν ἔχειν τινὰ δοκοῦσιν; {ΚΛ.} Ποῖοι δή; {ΑΘ.} Τὸ πολλὰς ἀνθρώπων φθορὰς γεγονέναι κατακλυσμοῖς τε καὶ νόσοις καὶ ἄλλοις πολλοῖς, ἐν οἷς βραχύ τι τῶν ἀνθρώπων λείπεσθαι γένος. {ΚΛ.} Πάνυ μὲν οὖν πιθανὸν τὸ τοιοῦτον πᾶν παντί. {ΑΘ.} Φέρε δή, νοήσωμεν μίαν τῶν πολλῶν ταύτην τὴν τῷ κατακλυσμῷ ποτε γενομένην. {ΚΛ.} Τὸ ποῖόν τι περὶ αὐτῆς διανοηθέντες; {ΑΘ.} Ὡς οἱ τότε περιφυγόντες τὴν φθορὰν σχεδὸν ὄρειοί τινες ἂν εἶεν νομῆς, ἐν κορυφαῖς που σμικρὰ ζώπυρα τοῦ τῶν ἀνθρώπων διασεσωμένα γένους. {ΚΛ.} Δῆλον. {ΑΘ.} Καὶ δὴ τοὺς τοιούτους γε ἀνάγκη που τῶν ἄλλων ἀπείρους εἶναι τεχνῶν [...] {ΑΘ.} Πόλεως δὲ καὶ πολιτείας πέρι καὶ νομοθεσίας, ὧν νῦν ὁ λόγος ἡμῖν παρέστηκεν, ἆρ' ὡς ἔπος εἰπεῖν οἰόμεθα καὶ μνήμην εἶναι τὸ παράπαν; {ΚΛ.} Οὐδαμῶς.

Platão, Leis 677a1-b6 e 678a3-6

*

As for the causes that originate in heaven, those are the ones which destroy the human race and reduce the inhabitants in one region to a bare few, and this occurs either because of pestilence, famine, or flood, and the most important cause is this last one, both because it is the most universal and also because those who save themselves are all mountaineers and crude people who, having no knowledge of anything from antiquity, cannot bequeath it to posterity.

[Quanto alle cause che vengono dal cielo, sono quelle che spengono la umana generazione, e riducano a pochi gli abitatori di parte del mondo. E questo viene o per peste o per fame o per una inondazione d’acque: e la più importante è questa ultima, sì perché la è più universale, sì perché quegli che si salvono sono uomini tutti montanari e rozzi, i quali, non avendo notizia di alcuna antichità, non la possono lasciare a’ posteri.]

Maquiavel, Discourses on Livy ii.5
OUP, Oxford: 1997 (trad.: Julia & Peter Bondanella)

5 comentários:

  1. Já estava a fazer falta uma destas. :)

    Maravilhoso como o Platão está (como de costume) preocupado com a transmissão das artes e dum tipo de conhecimento técnico que poderia em teoria vir a ser recuperado, enquanto que o Maquiavel olha para a mesma situação do ponto de vista da tradição, da "Antiguidade" e da História — perder a memória histórica está a um nível completamente diferente de perder επιστήμας, porque temos tudo para crer que a História não se repete, e que o conhecimento histórico uma vez perdido não pode ser recuperado.

    PS: Depois de escrever o que escrevi acima li a tradução inglesa que puseste, que parece contradizer o que eu disse. Ora eu comecei por ler o texto italiano, que diz algo substancialmente diferente: /non avendo notizia di alcuna antichità/ — que pode ser traduzido, aliás eu assim traduzi, "não tendo conhecimento de qualquer antiguidade", enquanto que o texto inglês parece estar a ler (assumindo que o texto italiano que citas está correcto) /non avendo notizia alcuna della antichità/, e nesse caso é possível, se eu tiver razão, que a tradução inglesa esteja errada & seja enganadora.

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  2. «um tipo de conhecimento técnico que poderia em teoria vir a ser recuperado» — não apenas em teoria, mas na realidade: o Estrangeiro Ateniense explica que estes cataclismos, de alguma forma, são necessários, para que haja algo de novo debaixo do céu, para que, a ciclos regulares, possamos reinventar tudo de novo, como fora a primeira vez.

    «temos tudo para crer que a História não se repete» — precisaria de estudar muito mais Maquiavel, mas não tenho a certeza de que ele concordasse 'tout court' contigo: há, obviamente, um certo sentido em que a História, como é óbvio, não se repete, mas a aproximação sistemática a que ele procede entre exemplos contemporâneos e clássicos leva-me a crer que, na óptica do Maquiavel, o ser humano e o poder permanecem fundamentalmente constantes, nos seus princípios, ao longo dos tempos: há erros que os princípes teimam em repetir, ignorantes do que sucedeu aos anteriores, e receitas de sucesso que, não podendo ser pura e simplesmente importadas (porque as circunstâncias são esquivas e variáveis), parecem unir os que triunfaram. Mas não quero batalhar muito nesta frente: é uma ideia, mas avanço-a 'groping'.

    Quanto à questão das traduções, creio que a tua interpretação é a mais correcta. Aliás, se continuares a ler o texto do Maquiavel, verás que ele fala depois em como os poucos que têm memória do que foi e o registam, fazem-no de acordo com os seus interesses, enviesados. Parece-me, pois, que se fala, como sublinhaste, sobretudo de uma memória da História, dos eventos, mais do que de descobertas.

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  3. Eu estava a ser talvez mais prosaico que tu, até porque me parece que tu estás a caminhar pelo caminho inverso de "reduzir" (transformar?) a História em algo que poderíamos chamar "lições da História". A História é mais do que aquilo que podemos dela aprender: concordo com a tua correcção do Maquiavel, mas é uma visão que eu não estava a esposar. O facto de podermos tirar (quase) as mesmas lições do Alexandre e do César (à la Plutarco) não quer dizer que Alexandre e César tenham sido a mesma personagem. Isso é transformar a História em /exempla/, e sendo isso certamente um aspecto, não era o que eu estava a tentar dizer.

    A minha crítica contra a «História não se repetir» era a crítica ao Eterno Retorno do Mesmo: o dilúvio não é uma εκπύρωσις. O Studium da Antiguidade pressupõe a crença (o axiôma?) da imutabilidade da natureza humana através dos séculos (por isso é que o Cristianismo é confuso), e nesse sentido o Maquiavel não está mais do que a tomar parte dessa grande atitude medieval & antiga. Mas é ainda assim um passo bastante diferente daquele implícito (e que tu explicitas) no Platão da recuperação das artes, que podem ser (ahã) recuperadas pristinamente, "como fora a primeira vez". A incómoda intromissão do Tempo na Eternidade.

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    1. Entre o cómico e o trágico
      é pequena a diferença
      ambos marcando presença
      no panorama do mágico!

      JCN

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  4. O clássico terá
    de se ajustar ao moderno
    se pretender ser eterno
    como o antigo foi já!

    JCN

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