quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Dar Nomes Às Coisas (Sobre o sarcófago romano em Inglaterra)

Nos últimos dias uma situação que tem agitado o meio classicista online tem sido a descoberta dum sarcófago duma criança romana em Inglaterra. Evidentemente todos nós sabemos que alguém que tenha morrido na semana passada merece um enterro, enquanto que alguém que tenha morrido há mais de 100 anos merece uma vitrine. O desrespeito para com os mortos na museologia contemporânea é gritante, desde as múmias do British Museum, à lava de Pompeia, passando pelos corpos ressequidos na Igreja do Carmo em Lisboa.

Assim, quando li que havia o plano pela Arqueologia de Warwick de dar um nome à criança recentemente exumada «como sinal de respeito», confesso que fiquei feliz. Melhor teria sido não a exumar sequer, mas, visto que o iam fazer, ao menos restituir-lhe aquele grau de humanidade que tantas vezes é negado à grande legião de seres humanos classificados com tiras numéricas e enfiados em sacos de plástico pelas caves de arquivos desse mundo fora.

Esperançoso não fiquei porém por tempo a mais, pois ao ver a lista proposta e a partir da qual será escolhido nome não consegui evitar sentir um nojo imenso. As propostas são as seguintes: 

Oriens (nascente, como o sol)
Loquor (falo, declaro)
Aperio (abro, revelo)
Addo (inspiro, adiciono)
Accendo (ilumino, acendo)
Parvulus (criança, bebé)

O que todas estas palavras têm em comum é que nenhuma delas é um nome próprio. O que quase todas partilham é serem verbos. Não podemos culpar os responsáveis pela elaboração da lista de terem falhas em Latim, pois esta não é de maneira nenhuma uma questão de língua, é antes uma questão de como nos queremos aproximar do passado. Uma criança romana jamais teria um nome deste género, e o facto de o nome mais sensato da lista seja o desumano "Criança" [Puerulus] diz muito do tom. Que insulto não julgaríamos nós estar a ser cometido contra a singularidade de um bebé que fosse chamado apenas "Bebé", sem outro nome que essa descrição?

E apesar disso esse é muito melhor que todas as alternativas, que partilham todas elas dum egocentrismo cronológico sem limites. Queriam honrar a criança, prestar-lhe ritos fúnebres, mas o que fazem? Escolhem palavras que dizem respeito ao (suposto) efeito que a descoberta do cadáver está para ter no nosso tempo: aquele que fala, assumimos nós que do passado, aquele que revela, talvez os segredos da Antiguidade, aquele que ilumina acende e se manifesta aos pobres visitantes de museus do século XXI como aquele que declara aquilo que eles querem ouvir.

Que é tudo menos ouvir o passado tal como ele foi, tudo menos respeitá-lo: uma criança romana chamar-se-ia Marcus, talvez. Ou Postuma. Ou Decimus. Ou Publia. Jamais saberemos, mas escolher um nome romano, talvez um nome específico da Britânia romanizada, seria sim um acto de respeito. Ao passo que as escolhas possíveis, sob a fachada de respeitar esta criança, mais não fazem estão que a humilhá-la e a desumanizá-la ainda mais do que o perturbar da sepultura já fizera. Não são nomes de respeito mas sim de turismo, de turismo perverso porque ilustrado pela teleologia asséptica deste género podre de museologia.


Requiescas in pace.

1 comentário:

  1. Tens toda a razão. Até fiquei com remorsos. É um desrespeito a forma como a museologia contemporânea trata os restos mortais antigos. Mas Marcus nunca seria um bom nome! Não te esqueças que Marcus puer improbus est! :)
    Beijinhos.

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