Quando Denis [Dionísio], de Siracusa, pediu a Platão documentos sobre a vida grega, colectiva e natural, recebeu minhas comédias e não as tragédias de Ésquilo, Sófocles, Eurípides. A Grécia estava ali, completa e viva, em tamanho real, nas dimensões dos vícios e das virtudes. Continuaram contemporâneas. Ainda comovem, irritam, enternecem. Fazem rir. E são apenas onze. Venceram mais de dois mil anos! [...] Outro elemento, desaparecido na maré-montante das convenções e restrições da Etiqueta presente, era a Linguagem usada pelos nossos atores e declamada pelo coro. Vibrava e agia inalterada e natural como se cada cidadão estivesse no palco. Não evitávamos vocábulos expressivos e menos ainda claras alusões às intimidades verídicas da vida doméstica. Mesmo que a concepção temática fosse alta e nova, como Nuvens, Rãs, Vespas, Pássaros, não empregávamos jamais dois vocabulários, como fazem os civilizados de agora, uma língua no palco e outra nas casas, ruas e praças, mercados e palácios, sendo realmente uma única. Vivíamos, verbalmente. A continuidade realística das vozes habituais. As nossas damas e matronas ouviam no palco o que sabiam existir nos costumes familiares. Apenas, nunca essa liberdade vocabular constituía o fundamento sedutor da peça. O nosso pudor tinha outros recatos e símbolos. As frases mais vivas caiam com naturalidade e no justo momento irrecusável. Por isso os tradutores, com moral ofendida e inocência ameaçada, fazem versão desses trechos do grego para o latim, ou avisam, anjos pulcros, que o período é intraduzível. Satanás reaceando brasas. Poseídon temendo afogar-se.
Câmara Cascudo, Prelúdio e Fuga do Real.
Fundação José Augusto, Natal: 1974, pp. 145-151.
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