Heraclito, o Paradoxógrafo (não confundir com o filósofo!), viveu, calcula-se, entre o final do século primeiro e o século segundo d.C. Nada sabemos sobre ele, mas chegou-nos, quase na íntegra, a sua pequena obra, Πέρι Ἀπίστων, Acerca das Coisas Incríveis. Trata-se de um texto em que o autor procura racionalizar os mitos gregos, ou seguindo uma linha evemerista (isto é, tentando resgatar um suposto fundo histórico que a lenda ocultaria) ou adoptando uma leitura alegórica, muito popular entre os filósofos. Não foi, de facto, o primeiro a tentar interpretar os mitos gregos com os olhos críticos da razão: Palefato escreveu uma obra do género, com o mesmo nome, mas mais famosa. Por muito que este género da abordagem ao legendarium grego nos possa causar confusão, ou mesmo repúdio (há tentativas de racionalização que, essas sim, são perfeitamente ridículas, não os mitos de que partem), a verdade é que este esforço de apropriação dos mitos pelos filósofos foi o que, em boa medida, permitiu a sua sobrevivência, particularmente numa era em que, como aquela em que Heraclito escreveu, o cristianismo começava a impôr-se. Estas leituras moralizadoras ou históricas dos mitos tornava-os aceitáveis para um público (não apenas o cristão) que não podia mais crer na antiga turbamulta de deuses e nas suas estórias. Há, aliás, sobre este assunto, um livro que me foi vivamente recomendado por um professor em Erasmus e que desde então estou para mandar vir (mas sempre outras coisas se interpõem): How Philosophers Saved Myths: Allegorical Interpretation and Classical Mythology, de Luc Brisson (que tem também um importante livro sobre o mito em Platão). Entretanto, abaixo, ficam duas entradas da obra de Heraclito, na tradução de Jacob Stern, publicada na Transactions of the American Philological Association em 2003 num estudo sobre Heraclito que me chegou hoje às mãos (conto ler em breve) e que inclui o texto grego integral e tradução.
20. The Golden Apples
They say that a dragon guarded the golden apples of the Hesperides. But Drago was a man who amassed much gold from his tending of fruit trees. He was chased after by some elegant women; they entangled his soul in their lustful passions and for the future acquired him as a servant and guard of their garden.
16. Circe
The myth has been handed down that Circe transformed men with a potion. Circe, however, was a prostitute who bewitched her clients at first with every sort of willingness to please and led them on to be well-disposed toward her. But when their passion for her grew, she controlled them through their lust, as they were mindlessly carried along in their pleasures.
imagem: The Garden of the Hesperides, de Frederic Lord Leighton (1891-2)
@ Museu Nacional de Liverpool (uma análise do quadro aqui)
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