A propósito da peça
Queda Medea — a partir de Séneca e Ovídio
fomos conversar com o encenador, Carlos de Jesus. Uma entrevista amigável sobre
Medeia: teatro, tradução, Ovídio, Séneca, Miguel de Unamuno.
É refrescante e
enriquecedor ouvir as palavras de alguém com experiência profundade nas duas
vertentes do drama antigo, a filologia e a dramatização propriamente dita. São
dois polos que não se unem com tanta frequência quanto seria desejado, e por
isso deixamos os nossos agradecimentos ao Carlos pelo tempo que nos devotou.
[Miguel Monteiro]
Estamos aqui para fazer uma entrevista à peça que encenaste, Queda Medea
(a partir de Séneca e Ovídio) e que vai ser apresentada hoje no Teatro
Académico Gil Vicente em Coimbra. Carlos, podes começar por nos falar muito
brevemente da trama da peça?
[Carlos de Jesus] O mito
de Medeia é bem familiar para a maioria das pessoas: a heroína que, por
motivações diferentes nas várias versões, decide, com o fim único de se vingar
de Jasão, o marido que tinha acabado de a abandonar (ou melhor, que nem sequer
a tinha abandonado, que a ia abandonar definitivamente nesse dia), decide matar
os filhos, precisamente no dia em que o ex-marido se volta a casar,
agora com Creúsa, uma princesa mais jovem. E quanto ao enredo desta peça em particular,
a história abre quando está a começar o dia e os preparativos para as segundas
núpcias de Jasão, o que naturalmente é dito pelo coro. Medeia apercebe-se do
que se está a passar (ou provavelmente já o saberia, não fica muito claro), mas
o facto de assistir e sobretudo ouvir as conversas do coro faz com que confirme
a disposição de fazer aquilo que provavelmente já teria planeado, vingar-se de
Jasão. Mas a vingança não se resume ao filicídio, esse é apenas o seu término e
expoente máximo; antes de dar morte aos filhos, envia um “manto”, um acessório,
um vestuário de boda (seja este objeto qual for, não nos interessou muito o que
era), envenenado com as suas poções e os seus encantamentos, de forma que
Creúsa morra assim que o vista; mais, envia-o sob a forma de presente de
casamento e por via dos próprios filhos, que assim são ao mesmo tempo arma e
vítimas de um crime. Depois de dar morte a Creúsa e a Creonte, porque entretanto
o fogo que teve início no véu envenenado de Creúsa espalha-se a todo o palácio
(a cena que o Pasolini faz tão bem), então sim mata os filhos (supostamente, na
versão de Séneca, em cena), na presença de Jasão.
[MM] Tu já tinhas
encenado outras peças, nomeadamente com o Thíasos cá em Coimbra. Mas,
sempre em Português. Como é que é encenar uma peça noutra língua que não é a
tua? A saber, para o caso, em castelhano?
[CJ] O castelhano não é
nem será nunca uma língua “minha”, como dizias; não estou sequer a trabalhar
para isso. Mais importante do que a peça ser numa língua ou outra é trabalhar
com bons textos, no caso com boas traduções. Se me estás a perguntar pelas
dificuldades do próprio processo, como é que eu e os actores nos entendemos
mesmo nas coisas pequenas (e claro, nas grandes) relacionadas com o processo de
encenação, posso dizer-te que tive que contar também muito com eles.
Naturalmente havia muita mímica pelo meio, havia por vezes coisas e situações
para as quais sentia uma falta de vocabulário enorme, mas esses esclarecimentos
cedo partiram deles, mesmo sem serem pedidos. O certo é que, ao cabo do
processo, não penso que tenha havido nenhuma grande dificuldade acrescida por
isso. Acho que a única coisa que posso dizer que foi diferente (além de toda a
concepção da peça e do próprio método de ensaios, que eu mesmo fui alterando ao
longo dos anos em que trabalho neste campo) é que, se em todas as peças que encenei
em português, ao mês de trabalho eu próprio já tinha decorado todo o texto; com
estas traduções em espanhol, isso não aconteceu.
[MM] Eu tinha aqui a
nota de que para a próxima tinhas de experimentar em Latim.
[CJ] Já fiz bocadinhos,
pedacinhos de Latim nas peças.
[Elisabete Cação] E em
Grego, também! Lembro-me da Κύπρι, Κύπρι [na tua encenação do Hipólito]
...
[CJ] Uma peça completa
em Latim só se fores lá tu. Se passares lá dois meses... (Risos)
[ΜΜ]
... a gente
faz! (Risos) Bem, continuando. Há um
certo pudor em torno da encenação das tragédias de Séneca — a capacidade
dramática (por oposição à lírica) é posta em causa até pelos próprios
filólogos, que tendem a dizer que eram escritas para serem recitadas, não
encenadas. Evidentemente isso não te assustou.
[CJ] Isso não me
assustou, nada. Pelo contrário, acho mesmo que foi uma motivação para fazer
diferente, para tentar o que poucos – pelo menos ao nível do teatro
universitário – se tinham aventurado a fazer. As desculpas filológicas,
porque são filológicas, usadas para não pôr contemporaneamente Séneca em cena não
são nada teatrais, não há nada na técnica teatral moderna e contemporânea que justifique esse
medo a Séneca.
[MM] Há talvez a noção
histórica. A ideia que se tem de que Séneca escrevia e recitava, não
apresentava, portanto seria mais devido ao exemplo histórico do que
propriamente a qualquer capacidade dramática do texto.
[CJ] Mas o teatro
contemporâneo vive mais de metade de pôr em cena textos que não são teatrais.
E, ao que julgo saber – embora confesse que a questão da performatividade
senequiana não me tirou muito o sono – os estudos mais recentes e autorizados
sobre o assunto já ultrapassaram essa teoria da declamação a que te referias.
[MM] Claro. E há ainda o
teu caso, que inseres o Ovídio.
[CJ] Sim, e pode
dizer-se em primeiríssima mão que, a correrem bem os projectos, toda a peça do
próximo ano será construída a partir das mesma tradução das Heroides, do século XVI, que usei em Queda Medea.
Um conjunto de três, quatro, ou cinco cartas de Ovídio, não sei bem ainda.
[MM] Deixo só a nota que
vai sair um filme em Outubro do Cristophe Honoré, que é uma adaptação das Metamorfoses
do Ovídio.
[CJ] A sério? Que boa
notícia! Portanto, e só para concluir esta questão: aquilo que os filólogos
apontaram como dificuldades para o texto de Séneca ser moderna- e contemporaneamente
encenado não faz grande sentido. Uma das questões apontadas é, por exemplo e há
muito, a extensão dos monólogos...
[MM] Não se encenava
Shakespeare.
[CJ] ... haveria uma
série de textos que não se encenava. E de textos dramáticos (como é o de
Séneca). Claro que as coisas ficam facilitadas se se adoptar, como tentámos
adoptar, uma estética contemporânea, algo mais conceitual e na ordem do
simbólico. Nós trabalhamos muito com símbolos. Outra das dificuldades de
encenar Séneca seria o facto de, em Séneca, supostamente as mortes ocorrem em
cena. Mas isso é uma liberdade da encenação. Posso dizer que nunca compreendi
bem (nem me esforcei por fazê-lo) a noção de teatro arqueológico. Afinal de contas o texto é o texto e uma
pessoa depois pega-lhe como entende.
[MM] Se não enquanto
encenador ias para o desemprego!
[CJ] O
que constituiria certamente uma grande perda do rendimento mensal, como deves
calcular! (Risos)
[MM] Eu estava ainda
aqui na parte da adaptação, da tradição filológica, e cheguei à pergunta óbvia:
a quem vai ver uma encenação da Medeia com base em textos clássicos, salta à
vista que, ao mesmo tempo que aparece Ovídio, falta aquela peça que provavelmente
teve o maior papel na popularização da história da Medeia: afinal de contas
onde é que está o Eurípides? Foi um eco nietzschiano de desprezo pelo terceiro
dos grandes tragediógrafos gregos? Ou foi simplesmente para deixar os outros
textos menos representados respirar?
[CJ] Houve várias
razões, houve razões dramáticas, mas também razões que não tiveram
rigorosamente nada que ver com o teatro. Comecemos pelas últimas: junto dos
meus contactos na Faculdade de Letras de Granada, foi do Departamento de Literatura
Latina que partiu a proposta. Eu à partida senti-me um bocadinho, não diria
pressionado, mas levado a escolher um texto clássico que originalmente fosse escrito
em Latim. E depois lembrei-me da minha vontade antiga de fazer Séneca. Ainda
pensei, "se calhar a Medeia já não", mas depois acabou mesmo
por ser. E claro, misturada com os textos de Ovídio. Na realidade, o guião é
cerca de 80% texto de Séneca, e 20% a Heroide de Ovídio, mas o texto de
Ovídio traz para a peça a Medeia romântica, a Medeia donzela, quase outra
Creúsa, que a Medeia de Séneca não tem ou na qual, pelo menos, não se
centra muito. De nietzschiano a peça tem muito, mas sobretudo no que diz
respeito à figura moral de Medeia, que a tradução de Unamuno, talvez por via do
carro alado, muito ajuda a colocar num patamar que está para além do bem e do mal.
[MM] E se eu bem me
lembro, na Heroide, ela ainda nem sequer se decidiu a matar os filhos.
Sabe só que vai fazer alguma coisa.
[CJ] Penso que a grande
interrogação da carta de Ovídio é lírica e romântica: "Caramba, porque é
que me fizeste isto?" Portanto, traz para a cena essa Medeia
apaixonada e jovem, um outro tempo, passado, em que o amor era autêntico.
Aliás, talvez isto de alguma maneira se compreenda da peça, que de alguma maneira
apresenta ao espectador duas Medeias e três tempos distintos. A primeira figura
que entra em cena é uma Medeia que eu imaginei já velha, digamos 20 anos depois
de tudo isto acontecer, e que diz um trecho de Ovídio; depois temos a Medeia
senequiana; e temos ainda essa Medeia juvenil que recorda todas essas promessas
que Jasão lhe fez, de amor eterno, etc. Um exemplo: imediatamente depois de
Medeia dizer que não só vai matar os filhos como também “Se, por acaso, eu
tivesse um filho no ventre arrancá-lo-ia a ferros para que a minha vingança e o
teu sofrimento fosse ainda maior”, vem um trecho de Ovídio em que a Medeia
recorda as promessas de amor da altura em que foi pedida em casamento por
Jasão. Os dois textos ajudam portanto a criar estes contrastes, que vivem
também do desdobramento da Medeia em duas personagens. Personagens essas que
não pretendem ser fisicamente a mesma figura que simplesmente usa cores
diferentes ou funciona em paralelo com a outra. Não: são duas personagens
autónomas, que têm o mesmo nome, que de alguma maneira corporizam as duas
Medeias que no fundo já existiam no Séneca e no Ovídio.
[MM] Eu ia fazer um
bocado essa pergunta: essas duas Medeias são derivadas respectivamente uma de
Séneca a outra de Ovídio, ou são duas Medeias presentes em cada uma das
narrativas?
[CJ] São ambas Medeias
presentes em cada uma das narrativas, e são sobretudo ambas muito presentes em
Séneca. A ideia das duas Medeias, das duas actrizes a fazer de Medeia, foi
anterior à inclusão do Ovídio. Depois funcionou, mas há trechos de Ovídio ditos
por ambas as Medeias, não há essa relação directa.
[MM] Bem, avançando. Tu
talvez antes de seres encenador, és um tradutor reconhecido da literatura
greco-latina. A sensibilidade para a escolha de traduções certamente não terá
sido descartada na selecção das versões escolhidas. Podes falar-nos um pouco
dessas escolhas? O texto de Ovídio é renascentista, do século XVII, o de Séneca
dos inícios do século XX, do Miguel de Unamuno. O que é que essas traduções têm
de especial, para as escolheres no lugar de escolher simplesmente traduções
contemporâneas?
[CJ] Não sei se serei um
tradutor reconhecido, mas algo já fiz a esse nível, tendo já traduzido para
teatro, diretamente, pelo menos duas vezes. O que estas traduções têm de
especial é, simplesmente, o facto de serem traduções feitas por poetas. No caso
do Unamuno é uma tradução feita por alguém que foi poeta, filósofo, político,
ensaísta, a pessoa que proclamou a República Espanhola da varanda da Câmara
Municial de Salamanca, onde era catedrático de Grego, e eu não conheço e duvido
que venha a conhecer uma tradução da Medeia
de Séneca melhor que a do Unamuno. O que é que essa tradução tem? Tem a
concisão da palavra poética que ele dominava bem. Não há um acrescento grande
de palavras na tradução. Se há uma frase que o Séneca quer que seja concisa e
lapidar, o Unamuno mantém isso, e tem todo o humanismo que lhe é reconhecido e
que está presente nessa tradução, além ainda da questão política. Eu escolhi
localizar plasticamente a peça no contexto de finais da I República também
muito por causa do Unamuno. O que vamos ver é uma Medeia — vá, duas —
aristocrata. É uma peça da aristocracia. É uma transposição dessa época (como
já os heróis gregos eram à partida aristocratas). Pareceu-me que era a época
que melhor poderia transmitir a elegância do próprio texto do Unamuno, e a
humanização, que é uma supra-humanização da Medeia. Mais, a cena de Queda Medea, situada algures nos anos 30
do século XX, acaba por ser um tributo à primeira encenação da tradução de
Unamuno, que pela primeira vez foi levada à cena no recém-inaugurado Teatro
Romano de Mérida, em 18 de Junho de 1932, protagonizada pela imensa (e
elegantíssima, diga-se) Margarita Xirgu.
[MM] Ainda sobre a
questão da escolha das traduções, confesso que tive uma reserva. Quer dizer,
quando vemos uma tradução feita há 20, 30 anos, especialmente na tragédia (na
comédia também, claro), já as palavra são pesadas. Não sentiste o peso
dos arcaísmos? Não só no Unamuno, mas se calhar em particular na tradução do
Diego de Rivera do século XVII?
[CJ] Senti, gostei, e procurei
exagerá-los (Risos). Explico-me: a
tradução que usei de Ovídio não dista de nós 60 anos, dista de nós muitos
séculos, está cravejada de arcaísmos. Por exemplo, em alguns momentos não
aparece a palavra pero (“mas”),
mas sim a palavra mas, que é uma forma ainda usada, mas já muito menos
usada que o equivalente normal; outro exemplo: a palavra usada para designar os
encantamentos, os menjurjes, é uma palavra que já
ninguém usa, mas eu quis tirar partido desses arcaísmo. Se mesmo em Espanha, na
estreia, algumas, muitas pessoas não saberiam o que queria dizer menjurjes?
Sim, provavelmente muitas não sabiam. Mas se vêem uma figura que está a
destilar líquidos de diferentes cores o efeito dramático ajuda na compreensão.
Portanto, os arcaísmos estavam lá, e ainda bem.
[MM] Voltando um pouco
atrás, quando falaste da Medeia do Pasolini, lembrei-me que para mim há
duas grandes referências visuais do drama da Medeia enquanto um todo, a Medeia
do Pasolini e, mais recentemente, a do Lars von Trier. Há alguma coisa que
pudesses dizer sobre a relação, se é que há de todo uma relação com uma ou com
a outra. Já falaste do palácio em chamas na do Pasolini.
[CJ] Em primeiro lugar,
ao que julgo saber, ambas essas versões se baseiam em Eurípides. Para mim a
grande diferença entre as duas, para além das diferenças óbvias – porque dois génios
não trabalham da mesma maneira –, tem que ver com os símbolos mais fortes. Para
mim, a Medeia do Pasolini tem como símbolos principais a terra e o fogo,
e a do Lars von Trier sobretudo a água. A simbologia da água é trazida para a
nossa cena: os líquidos, os próprios encantamentos e as poções), além de que Séneca,
sobretudo nas odes corais, reforça muito a imagem do mar: da viagem por mar, a
transposição do mar vista quase com a carga de hybris com que a viam Ésquilo e Heródoto; por isso uma ode coral
diz algo assim: “desgraçado do fulano que inventou a navegação, que teve a
ideia de que, se eu pusesse um lenho em cima da água, flutuaria e poderia
chegar a outro sítio, porque se essa pessoa não tivesse existido nunca, Jasão
nunca teria ido à procura do Velo de Ouro, nunca teria encontrado Medeia, e
esta desgraça toda não estaria agora a acontecer.” De alguma forma a própria
cortina (que separa o palco a meio), as ondulações da própria cortina reforçam
essa imagem; foi de propósito que eu não quis que fosse uma cortina lisa e
passada a riso; ao mesmo tempo te dá a água enquanto vidro ou cristal, dá-te
também a água enquanto espelho que transfigura e modifica a realidade, e foi
isso que eu tentei fazer com o facto de ter público em ambas as laterais – proporcionar
perspectivas diferentes do espectáculo, possibilitar que cada espectador
pudesse, em momentos diferentes, assistir à cena com ou sem uma barreira
translúcida, dada pela referida cortina.
[MM] Basicamente o que
tu estás a dizer é que as pessoas têm de ir à peça mais do que uma vez.
[CJ] Não têm que, mas por certo experimentarão
sensações diferentes se o fizerem. Embora não de forma confessada, foi talvez
por isso que, na estreia, tivemos sessão dupla! (Risos)
[MM] Uma outra coisa: no
início queria ter-te perguntado alguma coisa sobre as diferenças no ethos
da própria Medeia do Séneca e do Eurípides, e o impacto delas na tua peça.
[CJ] Mesmo acrescentado
Ovídio, a referência comum é sempre Eurípides. Nem Séneca nem Ovídio alteram a
história no essencial; acrescentam um ou outro pormenor, e sobretudo o texto de
Séneca, que é mais concreto nas indicações dramáticas, temporais e espaciais.
Mas a diferença está, sobretudo e a meu ver, na força das descrições. Não estou
a dizer que o texto de Eurípides não seja desses textos cuja força poética destrói
qualquer pessoa, claro que sim, mas o Séneca tem algo que se aproxima de um, eu
não diria masoquismo, mas sadismo. Anda ali próximo de um...
[MM] ... de um barroco descriptivo...
[CJ] ... que não tem de
ser limite dramático a coisa nenhuma. E depois há naturalmente pormenores,
coisas mais concretas que ele introduz, como por exemplo aquilo que eu dizia há
pouco, quando Medeia diz que se estivesse à espera de um filho, também esse o
mataria.
[MM] Isso só me traz à
memória o facto de que, em versões do mito anteriores ao Eurípides, o mais das
vezes a morte dos filhos é acidental. Normalmente ela não os mata
intencionalmente, e quando vê o que que fez, aí é que vem todo o drama, mas o
elemento do filicídio propositado, aquilo em que nós pensamos quando pensamos
na Medeia, era algo que não estava lá.
[CJ] Sim, o filicídio só
está a partir de Eurípides. Mas há ainda uma coisa interessante: no tempo
cronológico em que situamos a produção da Medeia de Séneca, a forma de
entender Medeia, e isso vê-se em Séneca, em Lucano — em Ovídio menos, que é um
lírico —, mas sobretudo nesses autores comprometidos com o regime imperial, e
depois também na Antologia Palatina pelo menos até ao século V da nossa
era. É uma tendência que se vai prolongando e amplificando, a de privar Medeia
de qualquer justificação, de qualquer explicação por processual que seja, transformando-a
progressivamente na besta selvagem que não quer parar de matar nunca. Isto nos
textos da Antologia Palatina vê-se muito: comenta-se um retrato de
Medeia dum mural qualquer, e diz-se que “pelos olhos do retrato, vê-se que,
mesmo na cera, Medeia continua a matar.” Ou seja, como se esse crime fosse
sempre prorrogado pelas próprias representações, plásticas e literárias, do crime
filicida. E Séneca está no início desse período, no qual Medeia se transforma
no símbolo da crueldade e da tirania imperial.
[MM] O que é algo a meu
ver um bocado estranho porque, reduzindo Medeia ao filicídio, reduzes também todas
as considerações morais que podiam estar ligadas a isso e pelas quais o
filicídio seria condenável. Deixa de ser um acto moral a ser investigado e
censurado, e passa apenas a ser um gesto bárbaro e selvagem. Animalesco.
[CJ] Animalesco. Isso
está ligado ao facto de ele, mais do que símbolo do poder imperial, Medea passar
a ser símbolo (trágico-poético) da decisão imperial – numa lógica de propaganta
anti-tirânica –, que não atende a X, Y, ou Z. Isto depois está ligado ao
Segundo Estoicismo, e a outras coisas ainda.
[MM] Mas é uma figura um
bocado improvável para retrato imperial, visto que ela comete crimes por
impotência, não pode fazer mais nada por si, é o seu último recurso...
[CJ] ... por isso é que
textos como o de Séneca — e o de Lucano seria ainda mais, segundo os
testemunhos que temos, visto que fragmentos acho que temos nenhum ou muito
poucos – não assentam numa lógica de impotência de Medeia, antes na sua
caracterização como o monstro (o super-homem
nietszchiano?) que racionalmente decide agir de acordo com o mal. O relacionamento
de Lucano com o regime imperial ainda foi pior que o de Séneca, e, bem, sabemos
mesmo que a Medeia de Lucano foi escrita e usada como propaganda
anti-tirania.
[MM] Só para terminar,
eu vi que o próprio Ovídio escreveu uma peça Medeia, da qual parece que
só nos chegou um fragmento que diz feror huc et illuc, plena deo [sou
arrebatada sem rumo, cheia de Deus].
[CJ] Escreveu, só nos
chegou isso mesmo. E só confirmas o que digo. Ainda que a Medeia de Ovídio pudesse não ser ainda o
monstro de que falava, este plena deo quer significar isso mesmo, que Medeia se assume publicamente como endeusada
(o entheos ou o enthymos grego); uma vez mais, para além do
bem e do mal, para além do humana, nessa posição que é dos deuses e onde o
bem e o mal respondem à vontade individual.
[MM] Muito obrigado,
Carlos, pelo teu tempo e pelas tuas palavras.
[CJ] Obrigado pelas tuas
perguntas, e claro, o que é mais importante, espero que disfrutes do
espectáculo desta noite!
Fotos do espectáculo de Claudio Castro Filho
Fotos da entrevista de Elisabete Cação