Edições 70, Lisboa: 2008.
À primeira vista, pode parecer estranho recensear um livro como este no blogue: o grosso da obra é dedicada à discussão dos textos capitais de Maquiavel, Hobbes, Rousseau e Publius, autores que merecem, indesmentivelmente, o rótulo de clássicos, mas não certamente no sentido em que o adjectivo mais é usado por aqui. A tese de doutoramento de Miguel Morgado é, porém, leitura obrigatória para quem quer pensar a fundo a filosofia política antiga, com que o autor gasta, em boa medida, precisamente as primeiras cento e cinquenta páginas, bem como o capítulo final. Autores como Platão, Aristóteles, Isócrates, Políbio e Cícero merecem uma análise cuidada na tentativa de construir uma teoria geral da aristocracia qua forma optimal de governo.
E, todavia, o foco do livro não se encontra na Antiguidade, mas sim na fortuna, a nível da ciência política, da constituição que os antigos tinham em tão boa conta. Logo no segundo capítulo somos confrontados com as discussões que varreram o Renascimento a propósito do que definia, afinal, a verdadeira nobreza/aristocracia, depois de um período, a Idade Média, em que esta se havia constituído como classe (sim, em Roma havia os patrícios, mas as duas situações são razoavelmente diferentes). A nobreza, por exemplo, era ou não era hereditária? Como conciliar uma tal posição com a pretensão de que os nobres eram, de facto, os melhores, e por isso o seu governo era «naturalmente» justo (e justificado)? Estas são questões com que já Platão, na República, se confrontava.
A segunda, e mais longa, parte do livro revolve, como já foi dito, em torno do pensamento de Maquiavel, Hobbes e Rousseau. O que interessa a Miguel Morgado, claro, é a crítica destes autores à aristocracia, pois que este regime, tido, desde os gregos, como o melhor, constituía-se como um verdadeiro problema para os modernos teorizadores políticos, não-aristocráticos. Estes viam-se na necessidade de erodir o prestígio da aristocracia se efectivamente pretendiam que as suas teorias fossem encaradas com alguma seriedade, como alternativa. Ao traçar a história da crítica da aristocracia, Miguel Morgado acaba por reconstituir, ao mesmo tempo, a história da emergência do pensamento democrático, nomeadamente com Hobbes (sim!) e Rousseau, o que é, para nós, cidadãos nativos de democracias liberais, curiosíssimo, pois que põe a nu os fundamentos (ou, muitas vezes, tão-só hipóteses) filosóficos que subjazem ao nosso regime actual.
Também a democracia antiga é, por isso, analisada, mesmo se não tão extensivamente como a aristocracia. O capítulo em que, contudo, se lhe dá maior atenção é, precisamente, já na parte terceira, aquele em que o pensamento de Publius é analisado, já que os Founding Fathers, no Federalista, tiveram o cuidado de distinguir 'democracia' e 'república': 'democracia' era aquela coisa perigosa dos atenienses, a 'república', pelo contrário, era um regime todo novo que ia ser experimentado pela primeira vez nos Estados Unidos. Esta distinção, a nós, que confundimos os dois termos, pode-nos parecer estranha, mas, ainda que, semanticamente, o tempo a não tenha preservado, do ponto de vista da ciência política, foi vital para a criação da democracia como hoje a conhecemos. Este capítulo, portanto, pode quase ser subintitulado «a democracia e os seus críticos», em que o termo 'democracia' representa aqui, como se disse, o sistema político ateniense.
Por fim, o livro fecha com uma análise da teoria da constituição mista por pensadores como Políbio e Cícero, procurando ver nesta uma tentativa de resposta do partido aristocrático, por um lado, à impossibilidade de concretizar a aristocracia pura e, por outro, à indesejabilidade disso, pelos perigos que acarretava a total alienação do povo do governo da cidade. Toda a viagem filosófica que Miguel Morgado nos propõe acaba, por isso, por enriquecer, de forma significativa, a nossa visão da política antiga, pois que as críticas que os modernos lhe dirigiram mais nos fazem perceber as suas valências e defeitos, bem como a sua natureza. Ao mesmo tempo, A Aristocracia e os Seus Críticos não se fica por um mero exercício de arqueologia filosófica, uma simples exposição da aristocracia antiga e, depois, das críticas que lhe foram sendo dirigidas ao longo do tempo; antes pelo contrário: o livro tem um profundo interesse para o leitor hoje, numa altura em que, se, por um lado, celebramos os cem anos da República, por outro, muitos são os que, cada vez mais, admitem a falência do sistema e questionam a validade da própria democracia, procurando informar-se sobre outros regimes alternativos. Num momento, portanto, de encruzilhada político-constitucional como este (relembremos que numa primeira versão da proposta de revisão constitucional do PSD havia a ideia de permitir um referendo ao regime, o que abria portas à implantação da monarquia), este é um livro muito válido e valioso, oferecendo um raro prazer intelectual. Sem dúvida dos melhores ensaios que li este ano.
Quero lê-lo!! Emprestas-mo? ;)
ResponderEliminarCom todo o gosto ;) Depois em Setembro relembra-me.
ResponderEliminar