Num mundo em que os nossos livros digitais estão armazenados numa cloud a-tópica, acessíveis em qualquer equipamento digital, seja no nosso smartphone, no tablet ou no e-reader, é demasiado fácil esquecermo-nos de que, na sua essência, os livros são objectos físicos. O estudante de Clássicas, porém, raramente se distrai desse facto: temos obras que nos chegaram num único manuscrito e é impossível não pensar o que seria se acaso também ele se tivesse perdido. Outras, por acidentes de percurso, não tiveram a mesma sorte: do Grande Hino Homérico a Diónisos, por exemplo, só temos fragmentos porque do único manuscrito conhecido que o continha caiu o fólio imediatamente anterior, deixando-nos apenas os dez últimos versos do poema (já no fólio seguinte). A materialidade dos textos não afecta apenas estes ou a nós, que os pretendemos hoje estudar. Encontrei no livro Direito Romano I: Introdução & Fontes de Sebastião Cruz (Coimbra, 1980, 3ª edição), no capítulo acerca dos diferentes períodos do Direito Romano, a seguinte passagem (pg. 49), elucidativa a este propósito, onde se explica como a mudança do suporte físico dos textos contribuiu para a diminuição da qualidade do Direito Romano (que estava já, no período em questão, em declínio):
Característica geral da época post-clássica: confusão. Confusão de terminologia, confusão de conceitos, confusão de instituições; e, por vezes, até confusão de textos. Esta confusão ou Vulgarisierung verifica-se desde 230 a 395, e tanto no Ocidente como no Oriente. A confusão de textos, ou melhor, a corrupção dos livros clássicos é levada a cabo não só pela prática mas sobretudo pelas escolas, indo depois reflectir-se, tanto nas constituições imperiais, como mais tarde nas legislações romano-bárbaras. E é curioso notar, conforme observa D'Ors [Una Introducción al Estudios del Derecho, Madrid, 1963], que para a corrupção dos livros clássicos muito contribuiu, pelo menos de início, um factor material a que à primeira vista não se dá grande importância — a substituição, nos textos jurídicos, do volumen ou liber (rolo) pelo codex (código, isto é, livro composto de páginas, cosido por um dos lados, como temos hoje). Este novo formato material dos textos jurídicos introduz-se na vida do Direito (escolas, tribunais, chancelaria imperial, administração central e local, etc.), a partir do séc. III d.C. E como o uso, o manejo, do codex é muito mais fácil, mais rápido e mais cómodo que o do volumen, nos fins do séc. III e príncipios do séc. IV, faz-se uma reedição da literatura clássica em codices; mas, em geral, em vez de se transcreverem os textos fielmente, resumem-se, simplificam-se e até, por vezes, são introduzidas alterações, umas devidas a erros involuntários dos amanuenses, outras originadas pelos cortes voluntários ordenados pelos autores das reedições — estas, tantas vezes feitas apressadamente. É muito interessante observar que a substitutição do volumen pelo codex alcamçou tal importância na vida jurídica e na vida corrente que ainda hoje, quando se fala de «códigos» sem mais nada, entendem-se livros de direito.
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