Roque Guinart, [o líder dos salteadores], mandando pôr os seus homens em fila, mandou trazer ali todos os trajos, jóias e dinheiro e o restante que desde a última partilha entre eles tinham roubado; e fazendo rapidamente a avaliação, guardando o que não podia repartir-se e substituindo-o por dinheiro, repartiu-o por todo o seu bando, com tanta legalidade e prudência, que não falhou nem um pouco nem defraudou nada da justiça distributiva. Feito isto, com o que todos ficaram contentes, satisfeitos e pagos, disse Roque a D. Quixote:
— Se não procedesse assim cuidadosamente, não se poderia viver entre eles.
Ao que disse Sancho:
— Segundo o que vi até aqui, é tão boa a justiça que é necessário usá-la até entre os próprios ladrões.
Ouviu-o um escudeiro [dos bandidos] e levantou bem alto a culatra de um arcabuz, com que, sem dúvida, abriria a cabeça de Sancho, se Roque Guinart não lhe bradasse para se deter. Sancho pasmou-se e resolveu não descoser os lábios enquanto estivesse entre aquela gente.
Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha. José Bento (trad). Relógio d'Água: 2005
§
— Não dirias que seria injusto para uma Cidade, Trasímaco, tentar submeter injustamente outras cidades e escravizá-las, ou manter muitas delas em sujeição?
— Sem dúvida — respondeu — e isso é o que a Cidade melhor e mais perfeitamente injusta fará com certeza.
— Compreendo, essa era a tua tese. Mas, desta tese, não retenho senão o seguinte: uma Cidade que se assenhoreia de outra, exercerá a sua dominação sem a justiça, ou será forçado a recorrer a ela?
— Se é como há pouco afirmavas que a justiça é sabedoria, terá que fazr uso da justiça. Mas se é como é, como eu disse, fará uso da injustiça.
— Admirável, ó Trasímaco, porque não te limitas a dizer que sim e que não com a cabeça, mas dás excelentes respostas.
— Tento agradar-te.
— É muito simpático da tua parte. Mas satisfaz-me ainda em mais uma coisa: parece-te que uma Cidade, um exército, piratas, ladrões, ou qualquer outro grupo que tentasse algum golpe em comum, poderiam ser bem sucedidos, caso se enganassem uns aos outros?
— É certo que não -- respondeu.
— E se as observassem, não seria melhor?
— É garantido.
Platão, A República, Livro 1.16, 351a-351d Guimarães, Lisboa: 2005. (trad.: Elísio Gala)
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