quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Uma Primeira Leitura do 'Lísis', de Platão - Parte I

Orestes and Pylades Fountain (1884), de Carl Johann Steinhauser (© Joe Yablonsky)

O Lísis foi, dos diálogos platónicos, o último que li. Circunstâncias várias levaram-me agora a pegar nele mais uma vez, com maior cuidado, interessado em traçar o argumento. Dessa leitura mais atenta resultou um conjunto de notas que me pareceu proveitoso pôr por escrito. O que se segue não é exactamente um comentário passo a passo (omitiram-se algumas voltas do argumento), mas cobrem-se todas as principais jogadas. Como o leitor rapidamente perceberá, ainda que o tema do diálogo seja a amizade, esta é muitas vezes pensada com termos (mas não necessariamente em termos) amorosos (a amplitude semântica do termo φίλος e cognatos também favorece a confusão). Todas as traduções, salvo indicação em contrário, são da tradução portuguesa de Francisco de Oliveira, já não disponível no mercado. Apesar de o começo do Lísis ser maravilhoso (do ponto de vista dramático é possível que só o Banquete - um diálogo que, aliás, tem várias relações com este - se lhe equipare em grau de qualidade), não nos ocuparemos dele, nem do pequeno prelúdio político. 

I. QUEM É, NA RELAÇÃO, O AMIGO?
I.1. O AMIGO COMO AMBOS 
A discussão que aqui nos concerne, em torno da amizade, inicia-se com a chegada de Menéxeno (211a). A investigação filosófica propriamente dita arranca em 211d6, depois de uma pequena introdução dramática. Sócrates confessa que desde criança que o seu mais íntimo desejo é ter amigos. Agradado com a amizade entre Lísis e Menéxeno, interroga o primeiro sobre qual dos dois, na relação, merece o nome de amigo: se aquele que ama (Lísis, suponhamos: chamemos-lhe, abstractamente, A), se o que é amado (Menéxeno, no nosso exemplo: o elemento B da relação). Lísis responde que não há qualquer diferença: trata-se de uma relação mútua: A é amigo de B e B é amigo de A precisamente, acrescentaríamos, em virtude de serem correspondidos pelo outro: a amizade não é unilateral. 

I.2. O AMIGO COMO O QUE É AMADO
Sócrates, porém, mostra alguma relutância em aceitar que numa relação de amizade esta reciprocidade exista sempre: no fim de contas, «é possível que o que ama [A] não seja retribuído por aquele a quem ama [B]» (212b5-6). Lísis, depois de alguma resistência, concede que também numa situação dessas é, ainda assim, possível usar o nome de amigo para caracterizar um dos elementos da relação. Sócrates sugere, num primeiro momento, que o amigo é o amado [B], dando como exemplo os pais, que, apesar do seu bebé não ser ainda capaz de retribuir o afecto que sentem por ele (este mostra até muitas vezes, pelo contrário, o seu desagrado com os pais, como quando castigado), não deixam de ter o seu filho como amigo. «Amigo não é o que ama, mas sim o que é amado» (213a4-5).

Sócrates, porém, de imediato rejeita esta definição, que, a seu ver, produziria resultados absurdos: seria possível ser inimigo do amigo e amigo do inimigo. Se A amar B, então B é amigo de A. Mas pode dar-se o caso de B destestar A, pelo que A será inimigo de B. Assim, o inimigo de B [A] amaria o amigo de A [B]. Ao contrário do que diz Sócrates, não há nada de contraditório neste resultado, como o esquema acima demonstra. Só se torna absurdo se por amigo e inimigo se entender algo outro, ou, melhor falando, algo mais que a definição antes apresentada, e que a falsifique. Uma definição, por definição, tomada em si, nunca pode gerar contradições. Se eu definir o Homem como bípede sem penas (Pl. Plt. 266e4-7), e se depois me apresentarem uma galinha depenada, eu tenho de a aceitar como um espécimen do género Homem. Só posso não o fazer se, afinal, a minha definição for apenas parcial, se para mim Homem for algo mais do que um bípede sem penas, um mais que, porém, deixei por expressar, como Sócrates aqui. No nosso quotidiano encontramos situações em que, de facto, B responde ao amor de A com desprezo; este, porém, não deixa ainda assim de o amar (cenário: um filho que entende todos os gestos da mãe, que apenas lhe quer bem, como limitações à sua liberdade e por isso a detesta; a mãe, porém, crê estar a fazer o melhor para ele e persevera na sua atitude, amando-o, apesar do filho lhe responder mal).   

I.3. O AMIGO COMO O QUE AMA
O amigo não é o amado [B]. Sócrates postula, experimentando, o inverso: o amigo é quem ama [A]. Tal hipótese, porém, sucumbe aos mesmos problemas: como é possível que eu seja amigo daquele que me odeia, ou seja, que eu ame quem não me ama? Ou que eu não retribua a amizade de quem me quer bem, sendo inimigo de quem é meu amigo? Tudo isto, como vimos, é perfeitamente possível na vida real, mas Sócrates recusa-se a aceitar estes, a seu ver, paradoxos (cremos tratar-se de uma atitude fingida, com fins erísticos: afinal, é Sócrates quem, antes de Cristo, proclama que é justo fazer o bem também aos nossos inimigos). Esta primeira secção da discussão acaba, pois, em aporia: «Que fazer, pois, se amigos nem são os que amam [I.3], nem os que são amados [I.2], nem os que amam e são amados [I.1]?» (213c5-7). Esta aporia permite avançar para uma nova fase da discussão, que se mostrará bem mais fecunda no que diz respeito ao deslindamento da natureza da amizade.

II. ENTRE QUEM SE GERA A AMIZADE?
II.1. ENTRE IGUAIS
II.1.1 ENTRE IGUAIS MAUS
Sócrates, perante o impasse, ataca a questão de nova perspectiva. Seguindo uma pista de Homero (Od. 17.218), sugere que a amizade se desenvolve entre iguais. Rapidamente, porém, se descobrem falhas em semelhante posição. Os humanos ou são bons ou são maus (mais tarde reconhecer-se-á a estreiteza desta divisão dicotómica, incapaz de capturar a verdade do Homem, o mais das vezes nem uma coisa nem outra, mas um ser misto, capaz do bem e do mal). Os iguais dos maus são os maus — mas os maus não podem ser amigos (note-se que, em virtude da aporia a que chegou a secção I, não sabemos bem o que devemos entender aqui sob o nome amigo) de ninguém: «os que provocam injustiças e os que são lesados, é impossível serem amigos» (214c2-3). Recusa-se mais uma vez a possibilidade de uma amizade entre um amigo (no sentido de I.2 ou I.3) e um inimigo (no mesmo sentido). Ao ouvido moderno parece sensato, porque interpretamos tendencialmente a amizade no sentido de I.1, mas vimos que esse não é aceite por Sócrates, que insiste (e tal mostrar-se-á fundamental para o seu argumento) na possibilidade de um amor unilateral. Os maus não podem ser amigos uns dos outros porque estarão sempre a prejudicar-se mutuamente (lembremos o que se diz no Livro I da República: até uma quadrilha de ladrões, para ser eficaz, tem de participar, ainda que de uma forma muito reduzida, na Justiça, ou nunca poderia sequer existir, ou seja: os ladrões não podem ser completa e absolutamente maus, fazendo mal a todos, inclusive aos cúmplices no crime).

II.1.2. ENTRE IGUAIS BONS
Também os bons não podem ser amigos entre si, porque o bom basta-se a si mesmo, é auto-suficiente, não tem necessidade de nada, «a nada se dedica [ἀγαπῴη]» (215b1). Sócrates não conseguiria pensar o Deus cristão, que, não precisando de nada, ainda assim é capaz de criar o mundo (Weil, que intui o problema lógico, encara por isso a criação como uma negação: Deus não pode transbordar, só renunciar a si próprio, para que algo que não ele próprio seja) e gratuitamente amar as suas criaturas. Os bons não têm amigos. Deus não tem amigos. 

II.1.3. ENTRE IGUAIS (ABSOLUTAMENTE)
Há, porém, um problema geral com a própria noção de amizade entre iguais. É um postulado socrático-platónico que o Bem é útil. Porém, como pode o igual [A] ser útil ao igual [B]? Se é igual, A nada tem para dar a B que este não possua já. Podemos ficar chocados com a visão de Sócrates da coisa. Para o filósofo, aparentemente, a companhia que os amigos fornecem e a partilha que permitem (de experiências e memórias) não são valores suficientemente úteis para serem aqui considerados. Que a amizade tenha de ser útil (não utilitarista: e Sócrates parecerá vezes demais reduzi-la a isso, o que, porém, à luz do final do argumento, perde algo da sua violência) não nos deve, porém, chocar. O princípio socrático da utilidade do Bem é fundamentalmente são, mas anuncia já um dos problemas mais recorrentes, sob uma forma ou outra, nos diálogos aporéticos, e que também aqui será abordado: útil para quê? 

II.2. ENTRE DESIGUAIS
Sócrates procura ultrapassar a esterilidade da pista homérica recorrendo a Hesíodo, que nos Trabalhos & Dias 25-6 afirma o exacto oposto do Poeta: os iguais têm ódio entre si. Assim, deveríamos procurar os amigos entre os que são desiguais entre si: «o contrário é o alimento do contrário, pois o igual nenhum proveito tira do seu igual» (215e8-216a1). Pronto Sócrates desmonta a hipótese, refazendo-a nos termos que já nos são familiares de I.2. O contrário é, por natureza, inimigo do seu oposto: onde o frio, aí não está quente; o que é forte, nada tem que ver com o fraco e se se torna fraco, é à custa da antiga força, que se vai dissolvendo e dando lugar à fraqueza (cf. Pl. Phd. 103b e ss.). Mas como pode o inimigo ser então amigo? Impossível. «Conclusão: nem o igual é amigo do igual, nem o contrário é amigo do contrário!» (216b8-9).

III. A AMIZADE POSSÍVEL

Sócrates, «como por inspiração» [ἀπομαντευόμενος], avança então nova possibilidade, que se revelará determinante: a amizade é uma relação possível entre o que (note-se a crescente objectivização: em breve já não falaremos só de pessoas) não é nem bom nem mau [A] e o que é bom [B] (que Sócrates, a partir de um provérbio, identifica com o Belo). Esta terceira categoria de seres é a chave de resolução do problema (e veremos, mais perto do fim do diálogo, como a introdução de nova terceira categoria, noutro âmbito, fornecerá, mais uma vez, a pista que permite evadir a aporia final). O desigual só não podia ser amigo do desigual se pensado enquanto total desigual, completo oposto. Não é esse o caso do que não é bom nem mau, que, não sendo, claro, igual ao que é bom, lhe é, porém, afim (conceito que muito nos vai ocupar mais perto do fim do diálogo), e não radicalmente contrário. A relação, porém, não é recíproca: se B é bom, e se o bom é auto-suficiente (II.1.2), então ele não ama A (o elemento activo da relação). Se esta é a amizade possível, pelo menos o conceito de amigo de I.1 foi então definitivamente abandonado. 

Sócrates oferece um exemplo de uma relação deste género: o corpo, que em si não é bom nem mau, ama a medicina, por causa da doença. Significa isto, portanto, que «o que não é mau nem bom torna-se amigo [aqui no sentido de I.3, mas I.2 continuará a ser também usado por Sócrates] do bom, devido à presença do mal» (217b4-6). A presença do mal, de facto, tanto pode suscitar o desejo do Bem como tornar uma pessoa pior e, assim, totalmente hostil a este. Quem ama a ciência só o pode fazer se ele mesmo não for sábio (ninguém deseja o que tem — mas vide o primeiro dos Diálogos de Amor, de Leão Hebreu), mas se preservar a consciência da sua ignorância (uma referência clara à douta ignorância de Sócrates). Aquele, pelo contrário, que, sendo ignorante, nem sequer está consciente da sua falta de saber, é absolutamente mau e, como mau, não pode amar o Bem. Lísis e Menéxeno concordam com a solução. O inquérito parece terminado.

«Há algum desejo maior do que quando se pensa em viver com  alguém por meio do qual se virá a ser um Homem melhor?» 
Ἔστιν οὖν τις μείζων ἐπιθυμία ἢ ὅταν τίς τῳ  συνὼν οἴηται δι' ἐκεῖνον ἔσεσθαι ἀμείνων ἀνήρ;
Platão, Crátilo 403d4-5. Piaget, Lisboa: 2001. (trad.: Maria José Figueiredo)

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