Estava eu a ler a introdução de Marie-Odile Goulet-Cazé ao Livro VI das Vidas e Opiniões dos Filósofos Eminentes, de Diógenes Laércio, na tradução francesa de referência, quando vejo uma sua nota a uma alusão de Aristóteles na Retórica III.10 (1411a24-25) a um Cão (como eram conhecidos os filósofos da escola kínica), que a autora, talvez a maior especialista viva sobre o assunto (juntamente com Luis Navia), defende dizer respeito não a Diógenes de Sínope, o Cão por excelência, mas a Antístenes, que o terá inspirado. Por curiosidade, resolvi ver o passo original e abri a minha edição da Retórica (posterior ao artigo em que Goulet-Cazé expôs mais detalhadamente a sua tese), da série das Obras Completas de Aristóteles, publicadas pela INCM. Eis o que encontrei: «... e Diógenes, o Cínico, [chamava] às tabernas "refeições públicas da Ática"» (segue-se uma nota que explica a natureza destas «refeições públicas», tipicamente espartanas). No original, lê-se: «ὁ Κύων [ἐκάλει] δὲ τὰ καπηλεῖα τὰ Ἀττικὰφιδίτια». Ou seja: o tradutor, onde estava simplesmente «o Cão», resolveu, sem dúvida animado por bons propósitos, para facilitar a vida ao leitor e poupar uma nota, pôr «Diógenes, o Cínico». Com isso, contudo, fez, ainda que inconscientemente, uma asneira potencial (digo potencial porque podemos, claro, discordar de Goulet-Cazé e manter que «o Cão», neste passo, é uma referência a Diógenes). São estes e outros exemplos que me levam a afirmar que, quando lidamos com estes textos antigos, de natureza filosófica, nos devemos ater o mais possível ao original, sem facilitar. Por certo, este género de tradução, se levado ao extremo, é insustentável para o grande público e percebo que se opte por uma versão razoavelmente fiel mas acessível. Nesse caso, porém, que não haja medo de, como dizia o Nabokov, encher a página de notas, sob pena de a tradução servir o curioso mas não o estudioso sem culpa de não saber grego. Este é um equilíbrio frágil e eu não tenho qualquer moralidade para estar aqui a pregar, mas, quando confrontado com um exemplo como este, em que era tão fácil ter satisfeito os dois públicos, traduzindo fielmente e depois em nota elucidando a referência, não posso não escrever.
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Não posso deixar de subscrever as tuas palavras com a salvaguarda de que nem eu nem tu nos salvaremos de que isto nos aconteça ou de que já nos tenha acontecido e talvez mais do que uma vez: centenas de parágrafos e centenas de notas, muitas horas de trabalho, um olhar viciado de já ter lido centenas de vezes um passo, um pouco mais de cansaço ou mesmo uma ligeira distracção - ou o caso manhoso de três ou quatro outros tradutores optarem pela mesma solução simplificadora - e tufa. Já está.
ResponderEliminarTatiana, dizes bem: crítica de tradução, o mais das vezes, é uma tarefa ingrata, porque nós, se convidados a traduzir o mesmo texto, faríamos possivelmente outros erros, alguns tão censuráveis como os que apontamos. Como dizes, a facilidade como que somos convidados a simplificar ou a "trair" movidos por bons propósitos (ou por simples cansaço e confusão) é grande e todos nós já sucumbimos e, o que é pior, mas inevitável, voltaremos a sucumbir a ela. É uma luta permanente do tradutor para manter a atenção ao original: mas se até Homero dormiu, como não havemos nós de por vezes fechar os olhos também? ;)
ResponderEliminarA Tradução é um tipo de Discurso (Logos) , muitos tradutores não percebem , mas o texto traduzido é obra dele mesmo ,
ResponderEliminarele é responsável por ela e se a traição ocorrer será contra sua própria criação , o autor daquele texto será como
a árvore de onde tomamos um fruto e plantamos sua semente.
O meu azar é que ainda ninguém avisou as minhas pilhas do Geoffrey Hill que têm que se traduzir a elas mesmas.
ResponderEliminarTens razão, João, mas algo também haveria de errado se esses erros não nos tirassem o sono. E tiram, caramba.
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