quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

na quadra em que estamos não se rogam pragas

   20 Dezembro (segunda). Chove. Mas não interessa. O Natal vem aí e é preciso cumprir a obrigação de inventar a amizade e a cortesia e a ternura familiar. (...) sento-me aqui à procura não bem do ter que dizer, mas de uma maneira em que esse dizer seja outro no seu modo de ser o mesmo. É um pouco difícil, atravessado como estou de pragas contra o Natal. (...) na quadra em que estamos não se rogam pragas. Mas é só o que me apetece pela chuva e pelos embrulhos. Bom. Mas dizer o quê então? Não sei, coisas várias, restos de uma conversa de ontem com a Regina. Relia eu um pouco de latim, que me tem apetecido como as filhós da infância. E então pensei uma vez mais em como é enorme a distância de uma língua escrita à falada. A escrita é uma invenção da gramática, mais ou menos desvitalizada como uma múmia. A falada é orgânica, feita de sucos e gestos e cuspo e contracções do rosto e esquematismos verbais. Como imaginar numa página em latim a língua falada na rua, em família, na cama, entre vigaristas, entre os trapos da pobreza? Como imaginá-la no correntio da vida, fora da gramática e das regras da recta pronúncia? (...)
   E então pus-me a pensar numa invenção provável para daqui a quinhentos anos e já decerto visionada por um inventor no desemprego e imaginário sem responsabilidades. Aqui há anos os jornais noticiaram que na Itália um sujeito abriu a TV e com enorme surpresa sua captou uma emissão de há quatro anos. Os sinais emissores tiveram tempo de percorrer um largo espaço do cosmos e voltaram do passeio desses quatro anos. Como não conceber que os raios luminosos emitidos há séculos venham a ser captados um dia? Como não imaginar que os sinais sonoros igualmente venham a ser recuperados por uma máquina habilidosa? (...)
   É fácil assim prever que ao serão um maníaco historiográfico carregue num botão do aparelho e reveja a batalha de Aljubarrota ou a pregação de Cristo ou o assassinato de César. Será então possível recuperar uma língua já morta, ouvir de novo um discurso de Péricles ou de Cícero, ouvir as plebes romanas aglomeradas no circo ou no foro ou nas termas, ou na Via Ápia. (...)
   Tenho pena de já cá não estar. Mas é possível que então eu me sentisse privado da ignorância, dentro do saber de então, como hoje me sinto intrigado e fascinado por não ter conhecido o que não conheci, desde a Helena de Tróia à padeira de Aljubarrota.

Vergílio Ferreira, Conta- Corrente IV (1982-1983), Lisboa, Bertrand Editores, 1993, 191-192

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