Algumas semanas atrás traduzi para esta página um poema do Horácio. Nele lemos o poeta a
pedir à lira ("barbitus"), o receptor do poema, que cantasse um poema «dic Latinum, / barbite, carmen!» A minha tradução poderá ter soado estranha a qualquer pessoa
por desconhecente que seja da língua latina. Pois nela lê-se, «Venha daí, / Lira minha, um composto
poema». Uma comparação visual bastaria para suspeitar de algo estranho: onde
está o "Latinum" na minha tradução, visivelmente identificável com
"Latino"? A minha escolha angustiou-me durante estas semanas desde então decorridas, e várias vezes pensei em escrever um texto que a explicasse. Este é esse texto.
É com
efeito verdade que uma tradução literal dos versos acima citados leria algo
como "canta, minha lira, um poema Latino." E uma tal opção não seria
de forma alguma desprovida de mérito. Ocorre perguntar o que dizemos quando em
Latim enunciamos a palavra "Latinum".
A
resposta instantânea está correcta: Latino refere-nos ao Lácio, portanto a
Roma; numa segunda instância refere-nos para a língua nele falada, a língua
romana, e para tudo o que tenha que ver com a República Romana. O sentido da
expressão, porém, vai além deste sentido imediato.
Numa
passagem famosa da sua Educação do Orador,
Quintiliano cita a seguinte passagem:
mihi non
invenuste dici videtur aliud esse Latine, aliud grammatice loqui. Ac de
analogia nimium.
Não me
parece desapropriado dizer que uma coisa é falar Latim, outra é falar
Gramática.
Institutio Oratoria. I.6.27
Esta passagem tem de
si uma vasta Nachleben, pois a sua
compreensão parcial ou mesmo falsa deu no Renascimento bastantes frutos,
nomeadamente nos debates em torno do estilo a ser escolhido no uso da língua
latina. Nesse Renascimento, estava em causa o processo de purificação e
purgação da língua latina de solecismos e barbarismos, e a posição de que não
basta juntar palavras pseudo-latinas, numa sequência indiferente de casos, para
se estar a falar gramaticalmente. Ou seja, não bastaria falar latim, era
preciso falar [latim] gramaticalmente.
Não é, porém, isso que Quintiliano está a dizer, de forma alguma. Todo
o capítulo 6, no qual a frase acima citada se insere, serve para fundamentar a
afirmação de que «Sermo constat ratione vetustate auctoritate consuetudine.»,
ou seja, «O discurso consta de racionalidade, antiguidade, autoridade, e
hábito.», e a justificação dessa afirmação passa pela demolição de que a língua
devesse ser racional, ou seja, devesse obedecer a regras firmes e
pré-estabelecidas. Para se opor a tal decisão Quintiliano cita exemplo atrás de
exemplo de palavras que se recusam a inserir-se no padrão racional da língua,
aquilo a que hoje em dia chamamos simplesmente excepções. Quintiliano porém
insere a existência de excepções num plano maior e mais grandioso de vindicação
da tradição a que hoje em dia chamaríamos, na senda de Burke, a democracia dos
vivos, dos mortos, e daqueles por nascer. Não é um obstruccionista, não nega o
papel da racionalidade nem do uso contemporâneo; mas tempera-os.
Esta posição
insere-se num debate certamente ainda vivo na época de Quintiliano em torno
precisamente do tema da racionalidade linguística. Júlio César participou ele
mesmo no debate com um tratado "Sobre a Analogia" (ver passagem de
Quintiliano acima), em que, embora exortasse «tanquam scopulum sic fugias
inauditum atque insolens verbum» (fr. 3 lib. I), "foge sempre das palavras
inauditas ou sem tradição como fugirias dos escolhos", acaba de forma
ligeiramente contraditória por perscrever o uso de várias "novidades"
linguísticas, como sejam o uso da letra Ⅎ em
imitação do digamma Grego pré-Clássico (Ϝ) para significar o V v /v/ (que, como
é sabido, na grafia do latim clássico se grafava de forma idêntica a u), a
decisão de escrever palavras como "maximum" em vez de
"maxumum", "lacrima" em vez de "lacruma" (decisão
essa que, segundo Cassiodoro, "propter tanti viri auctoritatem", ou seja "devido ao prestígio de um tão grande homem" acabou por fazer com que fosse a forma por 'i' a vingar, afirmação face à qual temos o direito de manter um saudável cepticismo), e finalmente dever-se-ia também ao mesmo Júlio César (segundo Prisciano) a introdução do famoso ens para traduzir o Grego ὄν "ente",
passo fundamental no desenvolvimento da filosofia e metafísica ocidental e tão
lamentado por Heidegger.
Voltando
a Quintiliano, se a frase "aliud latine aliud grammatice" sugere uma
adesão não à Grammatica mas sim à Latinitas, somos levados a concluir que por "Latinitas" se deve
entender adesão não só às regras mas também às características e às
idiossincracias da língua latina. "Latine loqui" torna-se por
conseguinte numa frase ambígua, passível de ser traduzida quer por "Falar
latim" quer por "Falar bom latim." A expressão traz à memória a
endíade pseudo-etimológica utilizada pelo Zarathustra de Nietzsche que afirma
que «Ich will deutsch und deutlich mit euch reden.»
("Desejo falar convosco em
alemão e claramente.").
Isto
traz-nos de volta ao "carmen Latinum", ao "poema latino" que Horácio se propunha cantar.
Comecemos por uma interpretação básica do poema. Quaisquer que sejam as
conotações permitidas pela palavra em todo o espectro da língua latina, qual é
aquela sugerida pelo poema?
A ideia
principal do poema é uma de conquista daquilo que de melhor a cultura Grega
possuía de forma a poder ser absorvido na cultura latina que a havia
conquistado. Se fosse hoje, e aceitando a definição de apropriação cultural
como «a power dynamic in which members of a dominant culture take elements from
a culture of people who have been systematically oppressed by that dominant
group», então tendo em conta a escravatura a que milhares de Gregos tinham sido
sujeitos nos séculos antecedentes, e a pilhagem sem precedentes das cidades da
Aqueia (como os Romanos lhe chamavam), então o século XXI ver-se-ia certamente
obrigado a condenar a obra de Horácio, tal como todo o projecto Romano da
"Græcia capta", magistralmente expresso no primeiro parágrafo das Disputações Tusculanas:
sed meum
semper judicium fuit omnia nostros aut invenisse per se sapientius quam Græcos
aut accepta ab illis fecisse meliora, quæ quidem digna statuissent, in quibus
elaborarent.
Mas eu
fui sempre da opinião de que, qualquer que seja o tema, ou fomos nós a
inventá-lo ou então, se se tratar de alguma coisa à qual os Gregos se dedicaram
e elaboraram, recebêmo-la deles, certo, mas depois tornámo-la melhor.
Felizmente,
porém, os nossos adoráveis & imperiais romanos tinham uma perspectiva
vastamente diferente da forma de lidar com apropriação cultural. Graças à sua
insensibilidade temos o Horácio. Que neste poema leva a cabo a dita
apropriação cultural de padrões gregos através da
conquista do metro alcaico. É Alceu, o poeta da ilha de Lesbos (hoje Lesvos),
aquele mencionado na segunda estrofe, o "Lesbius civis", que eu
traduzi como "alguém de Lesbos". A ele devemos um dos mais influentes
metros da poesia grega e, à conta de pessoas como Catulo e Horácio, também da
poesia latina. É a famosa estrofe Sáfica, assim chamada por referência à
poetisa Safo, contemporânea de Alceu, que apesar de não o ter inventado
aperfeiçoou-o e acabou por lhe ser associado na terminologia literária.
É fácil distinguir o
poema ouvindo a gravação renascentista que eu partilhei juntamente com o poema.
Ainda assim, diga-se que uma estrofe sáfica consiste em três versos sáficos
(-x---|xx-x-x) seguidos de um
verso adoneu (-xx-x), em que 'x'
simboliza uma sílaba breve,'u' uma sílaba longa, e 'x' é 'ancípite', ou seja pode ser uma ou outra, e finalmente
'|' significa uma 'cesura', ou seja uma quebra métrico-semântica a meio do
verso.
Uma estrofe sáfica
é, portanto, o seguinte:
-x---|xx-x-x
-x---|xx-x-x
-x---|xx-x-x
-xx-x
E é precisamente na
conquista deste metro que consiste a vitória de Horácio sobre a Grécia. É na
possibilidade de pegar na lira e no metro que "o homem de Lesbos foi o primeiro a
modular" (Lesbio primum modulate civi) e torná-lo em algo Latino que consiste o triunfo de Horácio.
Em que é que isso
deixa o tradutor? A língua portuguesa, mesmo que in extremis seja capaz de
acolher métrica quantitativa (assim nos referimos ao estilo de métrica
greco-latina de alternância de sílabas breves e longas), é-lhe ainda assim, por
motivos sobejamente óbvios, extremamente resistente. Estou a par de uma única
tentativa sustentada de tentar escrever em português em tais metros, o livro do
Frederico Lourenço Clara Suspeita de Luz
de 2011 (um projecto passível de ser irmanado a outros tais, principalmente em
inglês e em alemão no século XIX). Mas 99.999% das traduções de poemas latinos
nem sequer ousam, ou se ousam fixam-se meramente no eco do número de sílabas.
Eu não fui diferente, com a única memória da métrica original na evocação de
métrica qualitativa (a portuguesa) a fazer referência aos versos Adoneus do
poema original.
A questão
transforma-se, portanto, na seguinte: será a tradução de "Latinum"
por "Latino" digna? Honrará ela o poema? Ou, sendo que essa mesma
tradução desistiu de traduzir aquilo que o torna especificamente latino, não o
desonrará antes? A visão positiva diria que deixaria exposta a cicatriz da
proverbial insatisfação da tradução. Mas essa insatisfação, francamente, já se
tornou daqueles clichés do discurso literário, do tipo que se enuncia com voz
grave e pousada por pessoas que são poetas, e eu no que me toca fartei-me.
Isso não
obstante, pareceu-me que traduzir por "Latino" era demasiado
arrogante quer para o tradutor quer para os leitores da tradução, que são
deixados sem um referente, na exacta medida em que em vão buscarão a suposta
latinidade métrica (a única) do poema dela privado. Por oposição a essa presunção, há
um reconhecimento de um fracasso pessoal na tradução por "composto".
Uma tradução insuficiente, mas honesta na sua insuficiência, e que preferiu
optar pelo sentido alternativo da palavra, sentido esse vivo e real para a
língua em que o poema está escrito, mesmo se no poema em questão está apenas
latente, como eco duma ligação à língua da qual é servidor.
O Horácio certamente
teria certamente entendido que o sentido principal seria o da relação métrica,
com o alternativo, acima exposto, quase desactivado a uma primeira leitura. Não
podemos porém duvidar de que estaria consciente da insinuação que rastejava na
palavra, prestes a manifestar-se a um leitor atento. Aquilo que em Latim é
meramente implícito, na minha tradução é explícito. Humildemente explícito,
pretendendo-se que essa humildade mais não seja que um sinal de respeito pelo meu querido e pachorrento dominus.